Título: Filho não tem preço. É dever não compactuar
Autor: Evandro Éboli
Fonte: O Globo, 03/12/2006, O País, p. 24

Diana Piló e Carmem Ribas, mães de desaparecidos políticos, recusaram-se a receber indenização do governo

BRASÍLIA. Quase impossível não associar o sofrimento, a dor, o drama e a amargura com que convivem as mães de desaparecidos políticos com versos de Chico Buarque. Carmem Navarro Ribas e Diana Piló Oliveira convivem há 35 anos com a sensação de que a saudade é o pior tormento, o pior castigo, é o revés de um parto. Como tantas outras, transformaram a busca por notícias dos filhos na razão de viver. Mas recusaram a indenização que o Estado ofereceu por sua responsabilidade no sumiço durante a ditadura militar.

Carmem e Diana são mães de dois guerrilheiros que tombaram no Araguaia, Hélio Luiz Navarro e Pedro Alexandrino Oliveira. Os nomes deles constam da lista de 136 casos anexa à lei que criou a Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada há dez anos e que agora encerrou seus trabalhos. Seus familiares teriam direito líquido e certo de receber a indenização. As duas até protocolaram o pedido na comissão, mas para obter informações sobre Hélio e Pedro.

Elas evitam fazer alarde da decisão de não receber o dinheiro. Não querem polemizar e nem criticam os familiares que optaram pela indenização.

¿ Se eu fizer um pacto desse com o governo (receber a indenização), estaria pagando pela vida de meu filho. A vida dele não tem preço. Filho não tem preço. É um dever não compactuar ¿ disse Diana Piló.

Carmem Navarro também evita o assunto e se emociona. Com pouca esperança de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe dê uma resposta, ela recusou-se a doar sangue para o banco de DNA que está sendo criado para poder ajudar na identificação de restos mortais dos desaparecidos:

¿ Não recebo um centavo. Quero informações sobre meu filho, onde ele está, o que aconteceu. É um direito de que não abrimos mão. Nunca teremos nossos filhos para enterrar. O governo quer nos calar com esse dinheiro. Isso me revolta.

Em agosto de 1996, Carmem e Diana enviaram carta conjunta à comissão em que abriam mão da indenização. Mas não quiseram divulgação de seu pedido. Com o fim dos trabalhos da comissão, o GLOBO teve acesso à carta. ¿Não será através de moedas manchadas do próprio sangue deles, profanadas pela violência, torturas e indignidades que a dignidade de suas vidas será restaurada e lhe será devolvida... A indenização não nos pertence e a nenhum de nossos familiares. Assim, poderemos fechar um dia os olhos em paz com a nossa consciência, pois as moedas oferecidas permanecerão nas mãos daqueles que as profanaram. Somente assim nossos filhos poderão repousar em paz¿, afirmam na carta.

Cansadas da luta de tantos anos, as duas mães, hoje com idade avançada, evitam falar no assunto. Emocionam-se. Ao longo dos anos, percorreram dezenas de lugares, do Instituto Médico-Legal à Cruz Vermelha, da CNBB a entidades internacionais de direitos humanos. Em busca de notícia sobre os filhos, procuraram dom Paulo Evaristo Arns, dom Pedro Casaldáliga, Teotônio Vilela e Sobral Pinto.

¿É um gesto de grandeza que tem que ser encorajado¿

Nessa mesma carta, as duas afirmam que, certos ou errados, por caminhos tortuosos ou não, seus filhos acreditavam em dignidade. ¿Até hoje nossos filhos são apenas desaparecidos. Não têm rosto, não têm ideal. Apenas lutamos pela verdade, que era no que acreditavam¿.

Hélio Navarro e Pedro Alexandrino eram do PCdoB. Segundo relatórios militares, Hélio morreu aos 25 anos e Pedro, com 24 anos. No livro ¿Dossiê de mortos e desaparecidos¿, Hélio, que tinha o codinome Edinho, tinha capacidade de calcular distâncias na mata, o que lhe valeu o apelido de ¿passômetro¿. Pedro desapareceu na noite de Natal de 1969.

Ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, o advogado Augustino Veit elogia a decisão das duas mães.

¿ É um gesto de grandeza que tem que ser encorajado. A vida é o valor supremo. O desaparecimento é uma condição muito mais dolorosa que a morte. Elas renunciaram ao dinheiro na esperança de que o Estado desse conta do paradeiro de seus filhos ¿ afirma Augustino.