Título: A arma poderosa de um caudilho sedutor
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 03/12/2006, O Mundo, p. 60

Mais habilidoso com as palavras do que com um fuzil, Chávez usa retórica a caminho de um novo mandato como presidente

`Eu não sou eu, eu sou vocês. Vocês vão votar em vocês mesmos, pela Venezuela socialista do século XXI.¿ A frase do presidente venezuelano Hugo Chávez, pronunciada diante de uma multidão em Trujillo quarta-feira, num comício da reta final da campanha presidencial que será decidida hoje, revela não apenas um líder populista, mas a própria essência do fenômeno político que levou o polêmico militar que sonhava em ser jogador de beisebol nos Estados Unidos ao poder. Chávez se tornou o mais sedutor tipo de caudilho: aquele que mistura carisma, capacidade de improvisação e sorte.

O homem que se tornou o ponto central de todas as relações políticas neste país de 26 milhões da habitantes era um total desconhecido até 1992. Nesse ano, o tenente-coronel Chávez mostrou pela primeira vez que sua principal arma é a palavra, até porque já demonstrou não ter grande habilidade com o fuzil. A maior prova disso é o fato de o momento definitivo de sua vida, em 4 de fevereiro de 1992, ter sido também o maior fracasso de sua carreira militar. Carreira esta que começara por acaso, pois o rapaz do interior quase estudou engenharia em Mérida, preferindo ir para a Academia Militar em Caracas ¿porque em Mérida se jogava futebol, não beisebol¿.

Depois de 15 anos de preparação, Chávez e outros tenentes-coronéis decidiram tentar tomar o poder. O país passava por uma crise econômica sem precedentes, com a queda do preço do petróleo. O governo era visto como corrupto ¿ para os rebeldes, o mundo civil era corrupto.

No dia do golpe, Chávez ficou responsável pela capital, Caracas. Os outros quatro líderes da rebelião tinham como alvo objetivos militares, também arriscados. Os comandados de Chávez falharam em três tentativas de capturar o presidente Carlos Andrés Pérez. Pior, enquanto seus soldados trocavam tiros, Chávez observava tudo da segurança de uma colina, no Museu Militar. Os outros comandantes cumpriram suas missões. Chávez foi o único a fracassar.

Capturado, o governo decidiu usá-lo para convencer os demais revoltosos a depor as armas. Essa decisão mudaria a história da Venezuela.

¿ Companheiros, lamentavelmente, por enquanto, os objetivos que nos propusemos não foram atingidos na capital. Nós, aqui em Caracas, não conseguimos controlar o poder. Vocês fizeram muito bem aí, mas já é tempo de refletir, virão novas situações e o país tem que rumar para um melhor destino ¿ disse. ¿ Ouçam esta mensagem solidária. Agradeço-lhes a lealdade, a valentia, o desprendimento, e eu, perante o país e vocês, assumo a responsabilidade por este movimento militar bolivariano.

De golpista a ídolo e símbolo sexual

O ¿por enquanto¿ de Chávez entrou para a história política do país, e o fato de ele assumir a responsabilidade deu a ele uma aura de coragem. E ele se tornou um ídolo. Na prisão, onde ficou dois anos e dois meses, até ser indultado pelo presidente Rafael Caldera, recebia artistas, intelectuais e jornalistas às dezenas. Virou até símbolo sexual, o que acabou com seu casamento com Nancy Colmenares, com quem teve três filhos, e também com seu relacionamento com a mulher que era sua amante há nove anos, Herma Marksman. Aparentemente, ele e sua hoje ex-mulher Marisabel Rodríguez se casaram porque ela era uma de suas namoradas e ficou grávida durante a campanha presidencial de 1998.

Além de mulheres, também tinha da janela da cela a visão do monumento a Simón Bolívar. A impressão que muitos têm de que Chávez é uma pessoa simplória não é verdadeira. Já no Ensino Médio, freqüentava a biblioteca de um ex-guerrilheiro em Barinas, na qual teve contato com pilares da ciência política, leu boa parte da obra marxista e se apaixonou pelos líderes revolucionários sul-americanos. Segundo críticos, suas desventuras militares e o contexto de corrupção política fizeram com que ¿seqüestrasse¿ a imagem de Bolívar, algo que carrega até hoje.

Muitos creditam a esta fascinação quase sagrada que Chávez tem por Bolívar ¿ várias das reuniões de seu grupo rebelde tinham na mesa uma cadeira vazia, lugar reservado para o Libertador ¿ parte de sua aparente esquizofrenia política. A frase mais famosa de Bolívar, que lutou por uma América livre do jugo europeu e defendia que crioulos (descendentes de europeus nascidos nas Américas) criassem suas próprias formas de governo, é uma das sentenças mais repetida por Chávez: ¿Inventamos ou erramos.¿

O corrupto governo de Pérez ruiria no meses seguintes à prisão de Chávez e o presidente sofreria um impeachment no ano seguinte.

Ao sair da prisão, o encanto de Chávez diminuiu um pouco. Fez campanha para a abstenção nas eleições, até ser convencido pelo ex-guerrilheiro Luis Miquilena a adotar a linha democrática para chegar ao poder. Isso ocorreu somente em 1996. A decisão foi tomada no momento exato. O bipartidarismo que dominou a Venezuela por 40 anos, entre a Ação Democrática e a Copei, adernara. O presidente Caldera vencera as eleições de 1993 como candidato autônomo.

Nas eleições de 1998, Chávez mostrou que o ¿por enquanto¿ de seis anos antes não fora mera casualidade. Era prolixo, carismático.

¿ Ele conhece cada canto do país porque caminhou por ele. Conhece cada sabor porque comeu a comida de cada canto. Quando canta as músicas venezuelanas, é porque as conhece, não porque pensa em agradar ¿ disse Miraflores Méndez, professora chavista que percorria Caracas nas horas finais da campanha, quinta-feira.

No poder, Chávez adotou uma linha de grande centralização de poderes. O vácuo institucional no país, com a derrocada dos partidos, permitiu a ele angariar um grande poder pessoal na base da democracia direta: a própria Constituição de 1999 foi aprovada por referendo antes de ser promulgada. O que é considerado extremamente democrático por alguns, também é acusado por outros de, quando repetido à exaustão, ser uma espécie de ditadura da maioria. E traz uma inerente instabilidade ao governo. A mera lembrança da tentativa de golpe de 2002 levou a população de Caracas a estocar alimentos, que começaram a faltar nos mercados sexta-feira.

Mas Chávez tem conseguido agradar à maioria. Seu carisma ao tratar diretamente com o povo e a sorte de governar num período de alta do preço do petróleo fazem dele um adversário temível. Seus programas sociais bancados com dinheiro do petróleo têm levado o Estado onde ele não existia. E no eficiente ¿ e perigoso ¿ discurso de Chávez, o Estado é ele, e ele é o povo.

¿ A revolução não vai acabar, porque vocês sabem que Chávez é apenas um instrumento de vocês. E serei até que Deus e vocês queiram ¿ disse Chávez, no discurso de fim de campanha em Caracas, domingo passado. ¿ Serei um escravo de vocês até o dia em que vocês decidirem o contrário.

UM VETERANO DESCONHECIDO CONTRA CHÁVEZ, na página 65