Título: No Maracanã, o novo é o velho
Autor: Pedro Motta Gueiros
Fonte: O Globo, 03/12/2006, Esportes, p. 69

Pela quarta vez, estádio inaugura museu, agora mais alegre e lúdico como o futebol de outrora

Os elevadores rumo à modernidade ainda estão parados. Entre as torres de vidro da entrada dos camarotes já se percebe a necessidade de reparos ao monumento que mal entrou em operação. No acesso às tribunas, diante das fotos de Pelé e Garrincha, a segurança usa um aparelho telefônico de discar, do século passado. Coberto pela poeira de suas obras intermináveis, o Maracanã é um museu de si mesmo. Num estádio em que o novo já nasce velho, resta preservar o que há de mais valioso e antigo. No apagar das luzes do governo estadual, o passado está novamente embrulhado para presente. E será aberto no próximo dia 11, na quarta inauguração do Museu do Futebol.

A atmosfera dos grandes públicos e jogos, que o estádio não vê faz tempo, ainda existe na área de 2,3 mil metros quadrados, situada no quinto andar, atrás do gol à direita das cabines de rádio. Diferentemente de mega-projetos que não foram adiante, o atual troca o aparato tecnológico pela simplicidade e o lirismo do jogo. Tratado como arte, brincadeira e história, o futebol serve como peça de resistência para a degradação de valores que toma conta do resto do estádio. A cada jogo, a administração do Maracanã junta os cacos de banheiros e cadeiras depredados por vândalos. Como a previsão é de entrada franca, este mesmo público está convidado a preservar o passado.

¿ Quando entrarem aqui, espero que vejam o lado bonito do futebol, a alegria, a pelada, aquilo que é gostoso ¿ disse a arquiteta Heloísa Alves, sócia da Arco Produções, empresa contratada pela Secretaria Estadual de Cultura para realizar o projeto, com custo em torno de R$1 milhão, vindo de iniciativa privada.

Bolas recriadas com bexigas de boi

A segurança privada está paga por três meses. Depois, será o orçamento do novo governo que determinará o destino do acervo, sempre à mercê da política. Foi ao fim do mandato do presidente Emílio Garrastazu Médici que o museu foi inaugurado com o seu nome em 1974. A família de Garrincha só concordou em doar chuteiras e o uniforme usado por ele na Copa de 62 depois que o espaço ganhou o nome do craque no Governo Brizola, em 1993. Inicialmente situado onde hoje funciona um juizado especial, o museu foi desativado em 99 para dar lugar ao centro de imprensa para o Mundial de Clubes do ano seguinte. Desde então, a coleção ficou guardada numa sala do quarto andar do estádio, aberta apenas a pesquisadores.

¿ A gente se acostumou a viver sob perspectiva do novo. Acredito que desta vez dê certo ¿ disse a museóloga Carmem Dittz Chaves, no Maracanã desde 1979. ¿ Só no futebol, justifica-se o mal desempenho pelo atraso do salário. Um médico pode fazer o mesmo? No dia em que o funcionário público se desencantar, não há o que segure.

Diariamente, Carmem zela por camisas e peças antigas e teme pelas mudanças no ambiente. Em sua sala, o acervo se conserva em clima de simplicidade, entre papéis de seda e caixas de papelão. Como para quem cuida de um filho, o choque de temperatura é ameaçador. Da última vez, o ar-condicionado parou junto com o projeto. Em abril de 2002, antes de o ex-governador Garotinho deixar o cargo para disputar a presidência, os elevadores subiram entre as torres de vidro para mais uma reinauguração. Houve exposição temporária, mas o acervo nem chegou a ser transferido. Ficou fechado, como as torneiras do orçamento.

¿ O museu está saindo agora, porque o dinheiro vem de patrocínios e apoios. Se fosse do governo, já não tinha mais. No Maracanã, tudo desaparece ¿ disse uma das pessoas que testemunharam a reconstrução de algo que nem chegou a funcionar. ¿ Estava abandonado. Tinham roubado até exaustores e as placas de ar-condicionado.

A grama sintética da passarela de acesso estava entregue ao relento e às necessidades de pombos e morcegos. Em seu lugar, foi posto um piso emborrachado e cinzento, que resiste ao tempo e à falta de manutenção. Através dos vidros empoeirados é possível enxergar a ferrugem que já começa a atingir os elevadores. Até a inauguração, a maquiagem para a festa de fim de ano e de governo vai rejuvenescer o local. Mas, durante as obras, a equipe da Arco Produções usou tanto as escadas que fez delas parte integrante do museu. A exposição começa no térreo com uma breve história do Maracanã. Num país conhecido pela sua falta de memória, a amnésia não atinge o futebol.

¿ É do que mais o brasileiro se lembra. A memória do futebol é de alegria, até nas tristezas. Uma derrota é motivo para a próxima vitória ¿ afirma a museóloga, sobre a capacidade de o torcedor refazer suas expectativas mas não seu julgamento. ¿ O goleiro Barbosa morreu condenado pela derrota de 1950.

Fora de campo, o perdão o esquecimento são mais comuns. Quem um dia deu as costas é capaz de voltar para cortar a fita e receber aplausos. Mas como diz uma das salas do museu, o espetáculo é feito pelos craques e a torcida. Para transmitir a alma e emoção do jogo, o projeto usou vídeos, depoimentos e até um desenho animado, mas os melhores momentos da exposição têm a delicadeza da obra feita à mão. Seja por cartunistas, fotógrafos ou por um artista de Bangu que recriou as bolas usadas no fim do do século 19, em 1905 e 1913. Depois de procurar pelas bexigas de boi mais redondas possíveis, o trabalho foi costurar cada gomo de couro em torno da esfera 100% animal. Como diz uma frase do folclore, do futebol a bola foi feita de couro, que vem da vaca, que come grama e por isso tem que rolar suave sobre a relva. Ao recuperar o material e o espírito de outrora, a novidade do Maracanã é o seu passado.