Título: Farpas na política, pragmatismo nos negócios
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 04/12/2006, O Mundo, p. 19

Apesar dos freqüentes ataques de Chávez a Bush, EUA ainda são o maior comprador de petróleo da Venezuela

WASHINGTON. Os atritos políticos têm sido freqüentes entre Estados Unidos e Venezuela, com trocas de declarações ríspidas entre ambas as partes ¿ cabendo ao presidente Hugo Chávez as mais enfáticas. Mas quando se trata de negócios, ambos os governos têm sido bastante pragmáticos.

Por mais que se estranhem nos embates político-diplomáticos, Chávez e seu colega George W. Bush estão ligados ¿ mesmo que a contragosto ¿ por um único e cobiçado produto: o petróleo.

Os EUA precisam dele cada dia mais e, por isso, não podem se dar ao luxo de desprezar o fornecimento venezuelano. ¿Estamos viciados em petróleo¿, admitiu Bush publicamente. E as compras desse produto à Venezuela tornam os EUA o principal parceiro comercial deste país.

Americanos têm déficit crescente com o país

No ano passado, foram movimentados US$40,4 bilhões entre esses dois países. E a maior parcela desse dinheiro foi para os cofres do Tesouro venezuelano: os EUA adquiriram o equivalente a US$34 bilhões em produtos da Venezuela (sendo US$31 bilhões só em petróleo), segundo o Escritório de Comércio da Casa Branca.

Por sua vez, os venezuelanos adquiriram apenas US$6,4 bilhões aos EUA. Peças para reatores nucleares, maquinários e caldeiras foram os principais produtos das compras, com um total de US$2 bilhões. Isso significa, na prática, que o governo americano teve em 2005 um déficit comercial de US$27,6 bilhões com a Venezuela ¿ um aumento de US$7,4 bilhões em relação a 2004.

Pelas estimativas da Câmara Venezuelana-Americana de Comércio, este ano o total dos negócios entre os dois países chegará a US$50 bilhões, com um novo crescimento do déficit dos EUA. Se por um lado o comércio vai bem, o índice de investimentos americanos na Venezuela deverá cair novamente: ele era de US$9,1 bilhões em 2003 e baixou para US$8,5 bilhões em 2005, com tendência a declínio em 2006 e no ano que vem.

Curiosamente, o intenso relacionamento comercial bilateral permanece em segundo plano; sobressaindo apenas as provocações e ofensas. Em junho passado, por exemplo, ao visitar um centro comunitário em Omaha, no Nebraska, Bush foi apresentado à venezuelana Lourdes Secola que, aos 25 anos, se mudou para os EUA para estudar odontologia e acabou permanecendo no país. Ao cumprimentá-la, o presidente americano alfinetou diante dos microfones:

¿ Eu estou preocupado com o seu país. Eu acho que um dia ele vai estar bem, mas isso ainda vai demorar, porque às vezes surgem líderes que fazem um grande desserviço às tradições e ao povo de um país.

Três meses depois, Chávez deu o troco de uma forma violenta, quando em discurso na assembléia geral da Organização das Nações Unidas, chamou Bush de diabo. ¿Ainda há cheiro de enxofre aqui¿, disse ele, ao subir à bancada onde Bush estivera no dia anterior, para fazer o seu discurso.

Dois países teriam relação um pouco 'esquizofrênica'

O Departamento de Estado americano vem baixando cada vez mais as classificações da Venezuela em variados relatórios que emite: em matéria de respeito aos direitos humanos e de combate ao narcotráfico, para citar alguns. A grande preocupação americana parece ser o destino da democracia venezuelana e a ingerência da Venezuela na América Latina.

Analistas políticos já descreveram a troca de farpas e a estreita parceria comercial entre os líderes dos dois países como uma relação um ¿pouco esquizofrênica¿. O que vale para uma área (econômica), não vale para outra (política).