Título: O direito á diferença
Autor: Mendes, Candido
Fonte: O Globo, 05/12/2006, Opinião, p. 7

Avitória de Ségolène Royal como candidata socialista à Presidência da França e a surra democrata nos republicanos, nos Estados Unidos, semeiam mais perplexidade quanto a, de fato, poder o mundo escapar a uma fatalidade dos ditos modelos e valores do Ocidente no eixo da prosperidade hegemônica.

O que estaria em causa seria superar-se de vez o padrão Reagan-Bush, da baixa fiscalidade e desinteresse pelo desenvolvimento social, na ortodoxia econômica de Milton Friedman. Ganhou as eleições uma centro-direita democrática, tornando remotas todas as idéias de um new deal, de volta aos tempos rooseveltianos, ou mesmo ao pós-kennedismo. Mas a vitória foi também claramente a de uma liderança como a de Nancy Pelosi, nova speaker do Congresso, em claro avanço sobre Hillary Clinton, parceira dos republicanos na aprovação da guerra do Iraque. Mudarão as regras previdenciárias americanas, bem como o intervencionismo federal nas situações de catástrofe, resultante do peso do repúdio nas urnas à impotência de Bush, diante do furacão Katrina.

Não há a falar, entretanto, em alternativa na condução do modelo econômico americano, tal como são módicas as esperanças de que se acelere a retirada do Iraque. Mesmo após a saída de Rumsfeld, os estrategas insistem em que a ocupação continuaria por um decênio. O frisson da mudança poderá ficar na eleição de uma presidente mulher em Washington, acompanhando a possível novidade francesa.

Ségolène Royal conseguiu despolarizar de toda contundência socialista à alternativa à condução do atual modelo econômico europeu. Reduziu a plataforma a tópicos de somenos, como a criação de ombudsman sorteado para o controle da corrupção governamental, ou uma melhoria das condições estudantis dos imigrantes. Não há a falar em novos nortes para o país, na definição de seus níveis de emprego, ou de ação do Estado. Nem mesmo de um aceno à retomada da integração européia após o fracasso do referendo constitucional.

Mas fica a abertura a uma nova política externa, de ação no Oriente Médio, em que a força de uma eleição socialista em França apoiaria o único governo europeu de Executivo forte, como é o da surpreendente Espanha de José Luiz Zapatero. Embalde se pedira às maiorias milimétricas de Angela Merkel, ou de Romano Prodi, que se somem a uma visão do equilíbrio mundial, fora das lógicas dos fatos consumados, que ditaram a invasão americana e o impasse do Iraque.

A esquerda européia hoje deixa de lado o modelo econômico para lançar-se, sim, ao respaldo das autonomias culturais dentro da nação, como a da política migratória em França, ou a solução definitiva da guerra civil basca, dentro da força democrática da Espanha, pós-franquista. Prova-o a afirmação do Estado leigo, num definitivo contraponto com os riscos do neoconservatismo evangélico, instalado na Casa Branca de Bush e Karl Rove, o arquiteto do maquiavelismo bushiano.

A Europa de Zapatero e Ségolène quer trazer a Turquia para o seu seio, eliminando um futuro de ¿guerra de religiões¿ e de trincheiras geográficas de credos. Seu antídoto é o direito à diferença, no nível da defesa da vida, ou da liberdade de expressão, antes que o mundo das hegemonias se implante, de vez, pela ¿civilização do medo¿.

CANDIDO MENDES é presidente do senior board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.