Título: Trama complexa como nas obras de Dostoievsky
Autor:
Fonte: O Globo, 06/12/2006, O Mundo, p. 35

Nos 11 dias que se passaram desde que Alexander Litvinenko, um ex-agente da KGB, morreu envenenado por uma substância radioativa em Londres temos sabido muitas coisas sobre sua morte, não é mesmo?

Bem, soubemos que Litvinenko morreu após ingerir polônio 210, uma substância radioativa relativamente rara. Soubemos que um misterioso italiano, Mario Scaramella, que se diz um ¿perito em segurança independente¿ ¿ e que afirma que no ano passado identificou ex-agentes da KGB que vendiam material nuclear em San Marino ¿ também foi envenenado. Também soubemos que vários outros ex-agentes da KGB que rondam Londres tiveram testes positivos para polônio 210, assim como um restaurante japonês em Piccadilly, o quarto de hotel em Londres onde estava o ex-espião morto e alguns aviões.

Em outras palavras: embora não saibamos quem matou Litvinenko, descobrimos que Londres é um lugar mais emocionante do que imaginávamos. E aprendemos que as complexas tramas das obras de Dostoievsky refletem a realidade russa, e que a velha KGB vive com nova roupagem.

Ou melhor, fomos lembrados de que a velha KGB vive com nova roupagem, pois na realidade já sabíamos disso há algum tempo. Na verdade, muitos de seus antigos funcionários foram incorporados ao novo serviço de inteligência, seja no trabalho interno ou nos escritórios no exterior. Outros foram para o mundo dos negócios, trabalhando nos serviços de segurança de milionários russos, alguns, inclusive, se tornando milionários russos em suas novas atividades. Outros ainda enveredaram pelo crime organizado, e outro grupo, do qual o presidente Putin é o mais notório exemplo, entrou para a política.

Apesar das diferentes funções e dos novos ramos de atividade que assumiram, está claro que muitos desses ¿camaradas¿ continuam colaborando para algumas atividades que envolvem inteligência. Em 1999, por exemplo, um grupo de banqueiros russos foi apanhado lavando milhões de dólares em Nova York, numa operação que só pode ter sido feita baseada em informações da inteligência russa. Desde então, ficou claro que um bom número de empresas russas, principalmente bancos, lidava com grandes quantidades de dinheiro de origem misteriosa e, justamente nessas empresas ex-agentes da KGB se destacavam como novos e promissores diretores e executivos.

É claro que essa mesma relação lucrativa que se formou há alguns anos tornará extremamente difícil a identificação do verdadeiro assassino de Litvinenko.

Depois disso tudo, só podemos dizer que esse jogo pós-KGB é extremamente complexo: são conspirações dentro de conspirações, agentes de agentes de agentes, pessoas que aparentemente atuam em nome de alguma oligarquia ou dos insurgentes chechenos, mas que na verdade trabalham para outros interesses.

É possível que Litvinenko tenha sido assassinado por truculentos agentes secretos, como os britânicos suspeitam. Mas também é possível que esses assassinos tenham sido contratados por esses agentes, que podem ter sido contratados pelo governo ou por alguma oligarquia, ou pelos dois.

ANNE APPLEBAUM é colunista do ¿Washington Post¿