Título: Em meio ao caos, perdas e até risco de vida
Autor: Camarotti, Gerson e Alvarez, Regina
Fonte: O Globo, 07/12/2006, Economia, p. 35

Espera malograda por um transplante, criança sozinha no aeroporto e perda de conexões são reflexos da crise

Gabriel tem um ano, mora no interior da Bahia e vem de uma família que não tem condições de andar de avião. Mesmo assim, ele pagou caro pelo caos em que se transformou a aviação brasileira. Ontem, após ter sido submetido a uma série de exames pré-operatórios e ser preparado para a operação, Gabriel não pôde receber parte de um fígado, que o livraria dos transtornos provocados por uma lesão no órgão. O transplante, que segundo os médicos tem de ser feito no máximo em três meses, foi adiado devido ao atraso de cinco horas no vôo que transportava o fígado para Gabriel.

Às 11h de terça-feira, o médico Fábio Cressentini, responsável pela cirurgia de captação do fígado e de um pâncreas em São José do Rio Preto, no interior paulista, e pelo transporte do órgão até São Paulo, já estava no aeroporto para o vôo das 12h05m. Mas o avião só decolou às 17h por causa da pane dos equipamentos do Cindacta 1, em Brasília. O problema é que, depois de retirado, o fígado tem até 16 horas para funcionar novamente. Como o órgão era de um adulto, Gabriel receberia apenas um pedaço.

¿ Como houve muito atraso no vôo, não daria tempo para repartir o fígado em dois e preparar as cirurgias ¿ disse Jacira Rodrigues, responsável pela Coordenadoria de Transplantes, que acompanhou o drama.

Médico achou que iria mais rápido de avião

A mãe de Gabriel, Josiane Barbosa Machado, de 16 anos, está em São Paulo há 3 meses esperando pela cirurgia e não quer perder a esperança:

¿ Quero ver ele curado, brincando como as outras crianças, comendo direito, com a cor normal do olho.

O fígado que salvaria Gabriel acabou sendo transplantado em um adolescente. E isso só foi possível porque a Polícia Militar pôs um helicóptero à disposição do médico que trazia os órgãos, evitando que ele ficasse retido no trânsito.

¿ Eu dispensei o transporte terrestre e optei pelo aéreo (para buscar os órgãos no interior), mas as informações foram se desencontrando. Eu me sinto culpado pela opção que fiz com base nas informações que eles me deram ¿ afirmou o doutor Fábio Cressentini.

O adolescente de 17 anos que recebeu o fígado, cujo nome não foi divulgado pela Santa Casa, estava na fila de espera para o transplante há dois anos. Ele foi operado ontem, depois da agonia da chegada do órgão e de quase dez horas de cirurgia.

O drama de Gabriel foi dos mais graves em meio ao tumulto na aviação, mas muitos brasileiros perderam um dia de trabalho, oportunidades, dinheiro e paciência.

NOITE DE PESADELO: Depois de 30 horas, de espera e vôo, a menina Jéssica, de 10 anos, sentiu o alívio de reencontrar a família. Na terça-feira, Maria Bernardete Nunes Oliveira, tia de Jéssica, confiou-a a uma aeromoça da Gol no aeroporto de Brasília, para embarcar num avião rumo a Belém.

¿ Às 10h10m entregamos a menina na mão da aeromoça, com toda a documentação. A chegada dela era prevista para as 13h em Belém. Só que até às 18h a Jéssica não havia chegado ¿ contou Bernardete.

A empresa informou que a menina havia embarcado na terça-feira, às 18h. No entanto, 24 horas depois, Bernardete falou por telefone com a sobrinha, que ainda estava na sala de embarque. Jéssica ficou a terça-feira e a madrugada de ontem no aeroporto de Brasília, sem contato com a família.

AMAMENTAÇÃO: A viagem da empresária Tatiane Ramos durou 25 horas. De férias no Rio com a filha de apenas seis meses e o marido, o vôo para Porto Alegre, marcado para terça-feira às 15h25m, foi cancelado. Após dormir no Rio, ela chegou ontem às 7h no Aeroporto Tom Jobim, e só conseguiu decolar às 11h. Durante a espera, tinha de amamentar sua filha em pleno aeroporto:

¿ É um grande absurdo. Comprei uma passagem direta e agora serei obrigada a embarcar em um vôo cheio de conexão. Isso é ruim para o bebê.

ATÉ O BISPO: Os passageiros não poderiam nem mais ¿reclamar com o bispo¿, como diz o ditado. Ele próprio estava esperando ¿ e se queixando:

¿ Isso tudo é muito desconfortável. Quem está ocasionando isso tem de ter consciência do que está ocorrendo ¿ disse o bispo auxiliar de São Paulo e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dom Odilo Scherer.

NO FUTEBOL: Para disputar o título mais importante de sua história, o Mundial de Clubes, a partir do dia 13, no Japão, o Internacional se programou para minimizar os efeitos do fuso horário, mas não contava com o caos na aviação. O atraso de três horas no embarque em São Paulo fez a delegação perder a conexão para Tóquio em Paris, onde o time acabou dormindo em um hotel pago pela Air France.

DORMITÓRIO: Cerca de 200 pessoas dormiram no próprio aeroporto em Brasília, apertadas nas cadeiras das salas de espera ou no chão. As companhias áreas afirmaram que não havia espaço para todos na rede hoteleira da cidade e chegaram a fechar motéis, pousadas e pensões para tentar acomodar os passageiros.

¿ Estou em aeroportos desde sábado, quando saí de Madri. O vôo de lá atrasou, o vôo de ontem, de Fortaleza para Brasília, também atrasou e eu deveria ter chegado ontem (terça-feira) a Ji-Paraná (RO) ¿ afirmou Gislaine Pereira.

GIBA: Eleito o melhor jogador do Mundial de vôlei, conquistado no domingo pelo Brasil no Japão, o atacante Giba precisou de um avião particular para ir de São Paulo a Curitiba, onde vivem seus pais. Ele chegou a esperar por um vôo quatro horas e meia e decidiu alugar um jatinho:

¿ Vamos ver se dessa vez a gente consegue partir.

DESMAIO: Em Congonhas, A empresária Sonia Correia, de 45 anos, desmaiou na fila da TAM. Ela havia sofrido um acidente de carro na segunda-feira e embarcaria às 18h para Goiânia. Segundo funcionários do atendimento médico, Sonia estava estressada.

CANCELAMENTO: O ministro da Cultura, Gilberto Gil, teve de cancelar seus compromissos no Rio. E a diretoria da Associação Nacional de Jornais (ANJ) cancelou uma reunião de seus executivos que seria realizada hoje.