Título: Crianças morrem sem comida e higiene
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 11/12/2006, O País, p. 3

Periferias de Salvador e Teresina são exemplo de condições que levam à mortalidade

SALVADOR E TERESINA. Não é difícil encontrar, no Brasil, exemplos da pesquisa do Unicef, segundo a qual o país piorou no ranking da mortalidade infantil: crianças que morrem por falta de acesso a nutrição, saneamento, água potável e sistema de saúde. Aos seis meses de idade, a neta mais nova da dona-de-casa Maria do Socorro Silva, de 48 anos, ainda não tinha se alimentado às 11h de ontem. A família de nove pessoas, quatro delas crianças, vive de forma quase indigente, no bairro pobre e violento de Fazenda Coutos, na periferia de Salvador. Alimentam-se do que compram com recursos de programas sociais, que acabam logo no início do mês. Contam com a ajuda de vizinhos, também pobres, e com o que o marido de dona Maria arranja como catador de lixo. No sábado, as crianças dormiram sem qualquer alimentação. Para o almoço de ontem, dona Maria tinha apenas algumas batatas.

¿ Tem dias em que as crianças choram de fome e não temos o que dar. Várias vezes meu neto Wesley, de três anos, já desmaiou de fome. Só nós e Deus sabemos o que passamos. Às vezes, para enganar a fome deles, a gente compra geladinho (sacolé) fiado na vizinha, cada um custa R$0,15. Nós, adultos, nos viramos de qualquer jeito ¿ diz.

Há pouco mais de dois anos, dona Maria perdeu dois netos, de três e cinco anos, não propriamente em razão da fome, mas intoxicados por comida misturada com bicarbonato de sódio, que o marido dela tinha catado no lixo de uma indústria. Ele é analfabeto, como a mulher, e ainda apresenta sintomas de alcoolismo. Ao encontrar a comida e o produto parecido com sal, levou pra casa, como faz sempre que se depara com qualquer alimento, que no seu entendimento, encontre-se em bom estado.

¿ A menina era clarinha, ficou mais escura que o carvão, a senhora precisava ver que situação. Logo depois de comer ela começou a passar mal ¿ lembra a avó.

Lixo e vaso sanitário a céu aberto

Sem recursos para pagar o transporte, a mãe das crianças, Ana Patrícia Ferreira, de 30 anos, caminhou alguns quilômetros a pé para levar os filhos ao hospital, onde já chegaram praticamente mortos. Três outras crianças da família foram hospitalizadas:

¿ Fazer o quê, não podemos dispensar comida. Como a gente ia saber que era veneno?

Sem recursos, dona Maria conta que doenças como diarréia, febre e sarampo, que não lhe parecem tão graves, são tratadas em casa:

¿ A gente não tem dinheiro para ir ao médico e, se for, não vai poder comprar os remédios.

No Piauí, a estudante Patrícia Ramos da Silva não gosta de falar sobre o que aconteceu no dia 1º de setembro deste ano, quando seu filho Felipe Ramos da Silva, de 1 ano e 22 dias, morreu num hospital público de Teresina com insuficiência respiratória, após ter sido levado para atendimento no pronto-socorro do Hospital Getúlio Vargas (HGV), com forte gripe, vômitos e diarréia. Ela conta que a pediatra deu apenas soro e achou que era suficiente. Depois, seu filho foi transferido para um hospital municipal na periferia de Teresina, porque o pronto-socorro estava lotado de crianças na mesma situação:

¿ A cabeça e o pé estavam furados, porque os médicos estavam procurando veias para dar o soro. Puxei a luvinha e a mão estava completamente roxa. Ele estava morrendo ¿ recorda Patrícia.

Não é preciso ser médico para avaliar que vômitos e diarréia estão relacionados ao lugar onde Patrícia mora. A água da fossa do banheiro da casa de taipa, no Parque Esplanada, na periferia de Teresina, escorre pelo quintal, misturando-se à água usada para lavar roupas. Ao lado, existe um buraco onde os vizinhos jogam lixo, inclusive fezes em sacos plásticos, e um vaso sanitário a céu aberto.

O presidente da Associação de Moradores do Parque Esplanada, Carlos Vinicius Soares, afirma que na favela, que ele chama de vila, moram 172 famílias, todas sem saneamento.