Título: Morte sem julgamento
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Fonte: O Globo, 11/12/2006, O Mundo, p. 18

Governo Bachelet não concederá honras de Estado ou luto oficial a Pinochet, que faleceu aos 91 anos

SANTIAGO DO CHILE

Morreu ontem em Santiago, aos 91 anos, o general Augusto Pinochet, que comandou uma das mais cruéis ditaduras da América Latina. A Justiça chilena vinha tentando sem sucesso julgá-lo pelo assassinato de opositores durante seu regime (1973-1990) e também por enriquecimento ilícito desde que foram descobertas contas secretas que mantinha nos EUA, num total estimado em US$17 milhões. Seus opositores não o verão, porém, no banco de réus: o ex-ditador teve uma parada cardíaca fatal oito dias depois de ter sido internado no Hospital Militar de Santiago ao sofrer um infarto agudo do miocárdio e um edema pulmonar.

O funeral de Pinochet será amanhã numa cerimônia em que não contará com honras de chefe de Estado. Por ser ex-comandante do Exército, no entanto, ele receberá honras militares, conforme prevê a instituição. Tampouco foi decretado luto oficial por sua morte. A informação, que era aguardada com expectativa em todo o país, foi dada pelo porta-voz do Palácio La Moneda, Ricardo Lagos Weber, que disse ainda que a decisão foi tomada pela presidente da República, a socialista Michelle Bachelet, ela mesma uma vítima da ditadura.

No ano passado, ainda durante a campanha eleitoral, Bachelet havia dito que a ¿violentaria tremendamente¿ render honras de Estado e decretar luto nacional pela morte de Pinochet. O porta-voz do governo acrescentou que a presidente não irá ao funeral. A representante do Executivo na cerimônia será a ministra da Defesa, Vivianne Blanlot.

A deputada socialista Isabel Allende ¿ filha do presidente Salvador Allende, que se suicidou ao ser deposto por Pinochet no golpe de 1973 ¿ afirmou:

¿ Pinochet não merece, sob nenhuma circunstância, nenhum tipo de honra de Estado. Funerais desse tipo são reservados para presidentes eleitos, não para ditadores. E ele foi a pessoa que encabeçou a pior ditadura da história do Chile.

Segundo boletim médico apresentado ontem por Juan Ignacio Vergara, chefe da equipe médica que atendia o ex-general, ¿uma inesperada e grave descompensação obrigou os médicos a transferirem Pinochet para a Unidade de Tratamento Intensivo, onde foram aplicadas todas as medidas de ressuscitação sem que houvesse uma resposta clínica positiva¿.

No momento em que o estado de saúde de Pinochet se agravou, sua mulher, Lucía Hiriart, e alguns de seus cinco filhos se encontravam na capela do hospital participando de uma missa pela recuperação de sua saúde e pelo aniversário de Lucía, que completava 84 anos ontem.

Logo que a notícia da morte foi divulgada oficialmente, milhares de opositores do ex-ditador ganharam as ruas de Santiago para comemorar. A Praça de Armas, a Praça Itália e a Alameda Bernardo O¿Higgins, a principal da capital, ficaram abarrotadas de pessoas que celebravam cantando e empunhando bandeiras. Muitas estouraram garrafas de champanhe. Vários motoristas faziam soar as buzinas de seus carros simultaneamente. Confrontos entre a polícia e opositores chegaram a ser registrados. Em contrapartida, em frente ao Hospital Militar, alguns partidários de Pinochet choravam e cantavam o hino nacional empunhando fotos do ditador.

A passional divisão do país em relação à controvertida figura do general se repetiu ao longo de toda a semana em que ele esteve internado, no debate sobre como seria seu funeral. De acordo com pesquisa realizada pelo jornal ¿La Tercera¿, 55% da população não queriam que o o ex-governante tivesse um funeral de chefe de Estado. E 72% eram contra a decretação de luto oficial no país, que implicaria içar a bandeira a meio mastro em todos os edifícios do governo e suspender os espetáculos e as atividades públicas.

O corpo de Pinochet foi levado no início da noite de ontem para a capela da Escola Militar do Exército, em Santiago, onde está sendo velado. Todas as instituições militares do país já exibiam ontem bandeiras hasteadas a meio mastro. Segundo um comunicado do Exército, uma última missa será celebrada amanhã, na capela da Escola Militar. Posteriormente, seus restos serão cremados.

A morte de Pinochet não foi lamentada oficialmente por nenhum governo. Não poderia ser diferente no Brasil. Em nota divulgada no site da Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva se manifestou de forma lacônica: ¿O general Augusto Pinochet simbolizou um período sombrio na história da América do Sul. Foi uma longa noite em que as luzes da democracia desapareceram, apagadas por golpes autoritários. Cabe fazer votos de que nunca mais a liberdade na região venha a ser ameaçada e que, em cada país, os povos possam sempre resolver em paz as suas diferenças.¿

O governo de George W. Bush também lembrou a ditadura de Pinochet como um período difícil para o Chile.

¿ A ditadura de Augusto Pinochet no Chile representou um dos mais difíceis períodos da História da nação ¿ afirmou o porta-voz da Casa Branca, Tony Fratto. ¿ Nossos pensamentos hoje estão com as vítimas de seu regime. Elogiamos o povo do Chile por construir uma sociedade baseada na liberdade, no cumprimento da lei e no respeito pelos direitos humanos.

Instituições de direitos humanos fizeram apelos para que a morte do ex-ditador não suspenda as ações movidas contra ele na Justiça. Em nota, a Anistia Internacional sustentou: ¿As famílias dos sobreviventes precisam saber o que aconteceu, precisam de Justiça e de um julgamento. A morte de Pinochet não deve encerrar o capítulo mais negro da história do Chile, marcado pelas violações em massa dos direitos humanos e pela impunidade.¿

A última declaração pública de Pinochet foi divulgada em 25 de novembro, por ocasião de seu aniversário. Em nota lida por sua mulher, ele afirmou que assumia a ¿responsabilidade política¿ pelos atos cometidos durante o seu regime, mas que a única razão para suas medidas era ¿fazer do Chile um grande país e evitar sua desintegração¿.

Sob o regime de Pinochet, 3.197 pessoas foram mortas ¿ das quais 1.192 permanecem desaparecidas. Segundo dados oficiais, mais de 28 mil foram torturadas, entre elas a atual presidente, e cerca de 300 mil tiveram que se exilar em outros países para fugir à repressão política imposta pelo seu regime. Como que por ironia do destino, Pinochet morreu em pleno Dia Internacional dos Direitos Humanos.

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