Título: Dias sem fim para as refugiadas
Autor: Lootty, Juliana
Fonte: O Globo, 11/12/2006, O Mundo, p. 22

Nos campos, como no restante da África, mulheres carregam maior parte do fardo do trabalho

GAMBELLA, Etiópia. A placa não deixa dúvidas. É ali que funciona o centro para meninas mantido por uma ONG americana no campo de refugiados de Bonga, na Etiópia. Nas mesas de ping-pong e rodas de dominó dentro do galpão, entretanto, há apenas meninos e rapazes. Um deles sorri encabulado quando se pergunta onde estão elas:

¿ Tinha umas duas aqui de manhã, mas já foram embora. É que de tarde tem muita coisa para fazer ¿ diz Solomon Steven, de 22 anos, sem tirar os olhos da partida de tênis de mesa.

O centro de recreação ocupado por Steven e seus amigos não é o melhor lugar para se encontrar as meninas de Bonga. Elas estão longe dali, levando irmãos amarrados às costas, ajudando a carregar lenha e água, reproduzindo desde cedo a vida que suas mães e avós levavam antes de fugir da guerra ¿ e que muito provavelmente continuarão a levar quando retornarem a seu país.

Assim como no Sudão, o dia feminino nos campos de Bonga, Fugnido e Dimma começa muito antes do nascer do sol. Theresa Kuar, 39 anos, conta que está de pé todos os dias às 4h. Enquanto o marido e o filho ainda dormem, anda por 40 minutos até o rio Baro. Leva cerca de uma hora para voltar, parando no caminho para equilibrar os cinco galões de água que leva sobre a cabeça, nas mãos e amarrados à cintura. Atrás vão as filhas Alene e Nádia, de 7 e 12 anos, curvadas sob o peso de enormes feixes de madeira. Todas estão de volta antes das 7h, quando os dois homens da casa partem para os milharais. A jornada masculina termina três horas depois, e Bulus, o filho de 16 anos, vai para a escola. É o único da família a estudar.

¿ Uma vez fui chamada para uma reunião em que falaram sobre direitos da mulher ¿ diz Ruth Idris, líder da Associação de Mulheres de Bonga, referindo-se a um dos workshops promovidos no campo pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). ¿ Mas eu disse a eles que isso não existe, que o único direito que temos é trabalhar.

Em toda a África, as mulheres são responsáveis por dois terços das horas de trabalho e pela produção de 70% dos alimentos, embora sejam donas de apenas 10% da renda e de menos de 1% das propriedades do continente. Essa discrepância se reproduz nos campos de refugiados da Etiópia, apesar dos esforços das agências humanitárias para tentar mitigar a desigualdade entre os sexos, uma das principais marcas da cultura patriarcal sudanesa.

¿ Eles importaram seus hábitos, mas acreditamos que momentos de ruptura como o êxodo podem servir para mudar estruturas de poder ¿ diz Smeraf Eghiaber, assistente social do campo de Fugnido. ¿ Tentamos mudar essa mentalidade para que a vida delas melhore após a repatriação.

Dar às mulheres mais poder de decisão é uma das preocupações do Acnur. A agência estuda, por exemplo, alterar as regras de distribuição dos cartões que garantem o alimento das famílias. Eles costumam ser entregues aos homens ¿ chefes incontestáveis dos lares sudaneses ¿ mas são freqüentes os casos de pais que vendem a comida ou trocam parte dela por bebidas alcoólicas.

Ausentes das salas de aula

Passar a confiar os vales a mulheres, acredita a ONU, garantiria seu bom uso.

¿ Nos campos, como na guerra, as mulheres são garantidoras da paz. Num conflito, por exemplo, sacos de arroz nas mãos de um homem podem virar um fuzil ¿ diz Kisut Gebre, funcionário do Acnur.

A educação também é vista como ferramenta para mudar a realidade feminina, por ter o poder de diluir a cultura o machismo ¿ entre meninos e meninas. Mas nas escolas dos campos se repete outra triste realidade do restante da África, onde mulheres são dois terços dos 40 milhões sem educação. Nos três campos de refugiados do oeste etíope elas ocupam 36,2% das cadeiras nas escolas de ensino fundamental mantidas por organizações estrangeiras. Naqueles onde há também escolas de segundo grau, o índice cai para 4,7%.

Grávida do quarto filho aos 23 anos, Mary Tochko conta que tenta obter autorização do marido para freqüentar aulas de inglês em Fugnido. Por trás da insistência está o sonho de pedir asilo no Canadá com a família.

¿ Lá eu ia poder ficar em casa enquanto ele ia ter que trabalhar duro ¿ afirma. ¿ Pelo menos é isso o que eu ouço falar ¿ diz ela, com um sorriso desafiador.