Título: Família rejeita governo no funeral
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Fonte: O Globo, 12/12/2006, O Mundo, p. 27

Revoltado, filho diz que não quer presença de hipócritas e ministro chama Pinochet de `clássico ditador de direita¿

Milhares de pessoas esperaram horas sob o sol para se despedirem do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, cujo corpo foi velado ontem na Escola Militar de Santiago. Eles se uniram ao luto da família, que demonstrou indignação com a recusa do governo da presidente Michelle Bachelet em decretar luto oficial por sua morte. Enquanto o corpo do general golpista, cujo regime matou mais de três mil pessoas e torturou quase 30 mil, era velado, as bandeiras chilenas estavam penduradas no topo de seus mastros em todo o país.

¿ Era merecido (o luto oficial), porque ele se entregou a este país e o tirou de um caos tremendo ¿ disse o mais novo dos cinco filhos do ex-ditador, Marco Antonio Pinochet, que disse que sua família não quer a presença de qualquer integrante do governo no funeral, que será realizado hoje. ¿ Que as pessoas que gostavam dele venham ao funeral, mas não quero atos hipócritas, por respeito a minha mãe a a minha família.

O governo anunciou que a ministra da Defesa, Vivianne Blanlot, comparecerá ao funeral. Ontem, a presidente Bachelet explicou, sem mencionar o nome do ex-ditador morto, sua decisão de não decretar luto oficial no país. Ela disse que, no Chile, não há regras estipuladas para a concessão de honras de Estado, e que a escolha é do governante.

¿ Nas últimas horas, temos visto gestos de divisão que não gostamos, mas sei que temos, como país e como sociedade, a força ética para conseguir o reencontro ¿ disse ela, que foi presa e sofreu maus tratos na prisão durante a ditadura e cujo pai morreu num cárcere do regime. ¿ A história vai sendo construída e as verdades vão sendo instaladas e não vou fugir deste momento. Tenho um conceito muito formado sobre um período doloroso, dramático e complexo que viveu este país. Tenho memória, creio na verdade e aspiro à justiça.

Nos últimos seis anos, o governo chileno só decretou cinco vezes luto oficial no país. A maior deferência coube ao Papa João Paulo II, cuja morte mereceu três dias de ¿luto nacional¿. Já o ¿luto oficial¿ foi usado quatro vezes, uma delas, de dois dias, para a ex-dirigente comunista Gladys Marín.

Na manhã de ontem, o ministro do Interior, Belisario Velasco, usou a palavra que muitos políticos buscam evitar e que simplesmente não aparece na grande imprensa chilena para descrever Pinochet: ditador.

¿ Pinochet vai passar à história como um ditador, como o clássico ditador de direita que violou gravemente os direitos humanos e que enriqueceu. Essa foi a tônica dos ditadores de direita na América Latina ¿ disse ele.

O corpo de Pinochet estava num traje militar de gala azul escuro e seu rosto, bastante maquiado, podia ser visto através de um vidro. Sobre o caixão havia uma bandeira do Chile, outro traje de gala e a espada que ele ordenou que fosse feita para ele mesmo. Os cuidados seguem as honras como ex-comandante-em-chefe do Exército, que ele por três semanas foi, de modo legítimo, tendo sido escolhido para o cargo pelo presidente democraticamente eleito Salvador Allende antes do golpe de 11 de setembro de 1973.

Ex-ministros de seu regime estiveram presentes no velório ontem, assim como os chefes de Exército, Marinha e Aeronáutica e da força policial (os carabineros). Os líderes dos dois partidos oposicionistas de direita, UDI e RN, também foram ao velório.

O arcebispo de Santiago, o cardeal Francisco Javier Errázuriz, orou para que ¿a serenidade inunde o coração dos que se manifestam com paixão¿, numa referência aos distúrbios que ocorreram na cidade no dia anterior, quando milhares de pessoas foram às ruas comemorar ou chorar a morte do ex-ditador. Ao todo, 99 pessoas foram presas.

Já capelão do Exército, Iván Wells, foi menos diplomático:

¿ Pinochet já está olhando para o rosto de Deus para encontrar ali seu julgamento misericordioso.

A oração do capelão ia de encontro a centenas de mensagens encontradas ontem em muros da capital chilena. Várias delas faziam referências ao inferno, dizendo ser este o destino do general golpista: ¿Pinochet, mande um abraço para o diabo¿, ou ¿Senhor Diabo, não aceitamos devolução¿.

Na fila na qual a espera podia chegar até cinco horas, a tranqüilidade foi quebrada algumas vezes por motoristas que passavam ao lado e gritavam para os saudosistas da ditadura. ¿Assassino¿ era a palavra mais gritada.

Os pinochetistas gritaram várias palavras de ordem, como ¿Pinochet, Pinochet não se suicidou, foi levado por Deus¿, numa referência ao fato de Allende, depois de resistir, ter preferido se matar a se entregar aos militares que bombardearam e invadiram o Palácio de la Moneda, sede do governo.

María Orellana, de 50 anos, incentivava as pessoas na fila a cantar:

¿ Vamos, cantem mais forte que por causa disso os comunistas sempre nos ganham.

Um dos momentos mais emocionantes para os defensores do ex-ditador, e que gerou maior polêmica na sociedade chilena, foi a execução do hino nacional. Em vez de ser cantada a versão oficial do hino, com apenas uma estrofe e o refrão, foi incluída mais uma estrofe, que começa com a frase ¿valentes soldados¿. O trecho, que fora abandonado no início do século XX, foi recolocado no hino durante a ditadura, e retirado novamente quando o país foi redemocratizado.