Título: A sombra de Pinochet
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 12/12/2006, O Mundo, p. 32

Morreu de verdade o general Augusto Pinochet?

Embora não haja dúvida de que seu corpo, comprovadamente mortal, já não empesteia com sua respiração o ar do meu país, temo que o ditador que malgovernou o Chile durante tantos anos não vá nunca se extinguir desta terra. Para exorcizá-lo definitivamente, teria sido necessário que fosse concluído cada um dos inumeráveis processos por tortura e seqüestro, roubo e assassinato, que o seguiam nos tribunais chilenos; teria sido necessário que se obrigasse Pinochet a olhar, uma atrás da outra, a cara dos familiares dos homens e mulheres que fez desaparecer; teria sido crucial que aliviasse de alguma maneira a dor múltipla e irreparável que infligiu. Teria sido necessário que estivesse solitário na morte, em vez de que um terço cúmplice, recalcitrante e autoritário da população chilena chorasse sua partida e exigisse duelo nacional; teria que haver se encontrado solitário e frio. Mas é tal a influência que ainda produz esse tirano supostamente morto que o governo democrático decidiu, de forma indigna e vergonhosa, que a ministra da Defesa, Vivian Blanlot, assistisse oficialmente aos ritos fúnebres. Um governo presidido por uma mulher, Michelle Bachelet, a quem o general Pinochet encarcerou e atormentou, e cujo pai mandou matar! A ministra da Defesa de um Chile democrático participando em uma homenagem a um terrorista internacional que mandou matar os três ministros de Defesa de Salvador Allende, o homem que assassinou José Tohá num calabouço chileno, Orlando Letelier numa rua em Washington, e o ex-comandante-em-chefe do Exército chileno Carlos Prats González numa avenida vazia de Buenos Aires!

E, no entanto, apesar desses desconsoladores signos da permanência e poderio do General para além da morte, também sinto que algo mudou categoricamente em meu país. Sabem-no milhares e milhares de chilenos que festejaram de forma espontânea a notícia da partida do general Pinochet deste mundo como se tratasse não de uma extinção, mas de um alumbramento. Dançando nas ruas de Santiago eles repetiam uma palavra incessantemente: a palavra sombra. Se foi a sombra, dizia um homem e dizia uma mulher, sem haver combinado, sussurravam uns e outros e todos. A sombra, a sombra, já não cai a sombra de Pinochet sobre nós. Como se os mil demônios de uma praga houvessem sido lavados do território nacional, como se entendêssemos que nunca mais o medo, nunca mais o helicóptero na noite, nunca mais a sombra impura e poluta. Para esses celebrantes, algo se havia quebrado para sempre no momento em que deixou de bater o coração áspero e impenitente de Augusto Pinochet. Tinham passado a vida, passamos a vida, imaginando este momento, este dia em que a escuridão retrocede. Esse instante em que já não podemos culpar o ditador por tudo que vai mal, tudo que entristece e frustra. Esse instante em que não teremos mais Pinochet como horizonte perverso.

Morreu de verdade o General? Deixará alguma vez de contaminar a vida nacional? Deixaremos de ser alguma vez um país dividido? Por acaso terá razão aquela mãe futura, grávida de sete meses, que saltava de alegria no centro de Santiago quando proclamou que agora todo dia seria diferente, porque seu filho ia nascer num Chile sem Pinochet?

A batalha pela alma de meu país acaba de recomeçar.

ARIEL DORFMAN é autor de ¿O longo adeus a Pinochet¿ (Companhia das Letras)