Título: Meninos Perdidos do Sudão ainda à espera do futuro, nos campos da Etiópia
Autor: Lootty, Juliana
Fonte: O Globo, 12/12/2006, O Mundo, p. 33

GAMBELLA, Etiópia. Uma das mais conhecidas histórias da guerra do Sudão é a de 26 mil crianças e adolescentes que, no fim da década de 1980, fugiram sozinhas do sul do país, acossados por ataques sistemáticos de soldados de Cartum a seus vilarejos. Entraram para a história como os ¿Meninos Perdidos do Sudão¿, nome inspirado nos Meninos Perdidos de ¿Peter Pan¿ ¿ crianças que eram enviadas à Terra do Nunca se não fossem reclamadas pelas famílias sete dias após terem desaparecido.

Assim como os personagens do clássico, milhares deles continuam até hoje longe de casa e das famílias, sem saber sequer se são órfãos ou se teriam para onde ou quem retornar no Sudão. Espalhados por campos de refugiados de Etiópia e Quênia, a maioria já atingiu a vida adulta e busca asilo num terceiro país ¿ de preferência longe da África.

São pessoas como Luca Alemi, de 25 anos, que fugiu da cidade sudanesa de Kurungo após um ataque do Exército em 1982. Conta que levou cinco semanas para chegar ao campo de refugiados de Fugnido, e tem ainda vivas as memórias da saga:

¿ Andava com três meninos da minha cidade porque era mais fácil. Quando um ficava cansado, carregava o outro ¿ lembra, dizendo que não tinha idéia à época de que nunca mais veria os pais. ¿ Quando batia a fome, o jeito era comer folhas. Mas teve gente que simplesmente desistiu. Cansou, sentou e morreu ¿ relata.

A tristeza que começa a tomar conta de Alemi é aliviada com a chegada de um de seus companheiros de êxodo, Isak Assun, de 27 anos, que hoje também vive em Fugnido. Com prospectos de pedido de asilo no Canadá sobre o colo, os dois falam animadamente sobre o futuro. Inseparáveis, querem ir para o mesmo país, trabalhar como médicos ou engenheiros, namorar uma estrangeira, casar e começar uma família.

O otimismo é inspirado pelo pacote de asilo concedido pelos EUA em 2001 a cerca de 3.600 dos ¿Meninos Perdidos do Sudão¿. Mas Alemi e Assun já sentiram na pele que os tempos mudaram. Embora países como EUA, Austrália, Nova Zelândia e Canadá concedam regularmente asilos a grupos de refugiados ¿ há funcionários destes governos que visitam os campos da Etiópia de quando em quando, para receber inscrições ¿ o endurecimento das regras de imigração impostas após o 11 de Setembro tornou o processo de reassentamento muito mais difícil. Os dois já se inscreveram ao menos três vezes nesses programas ¿ a última deles esse ano ¿ mas nunca tiveram resposta.

Segundo a ONG Save the Children, há hoje cerca de seis mil daqueles meninos sudaneses asilados nos EUA, mas os atentados tornaram o processo mais difícil e mais lento.

¿ O duro é perceber que esses garotos nada têm a ver com terrorismo. Eles é que foram vítimas do terror ¿ diz Tamrat Ayela, do escritório da ONG no campo de Bonga. (J.I.)