Título: Geração de lugar nenhum
Autor: Lootty, Juliana
Fonte: O Globo, 12/12/2006, O Mundo, p. 33

Destino de jovens que nasceram nos campos de refugiados e nunca pisaram no Sudão é incógnita

GAMBELLA, Etiópia. O tênis da repórter incomoda Michael Thon. Ele olha, franze o cenho, disfarça, coça a cabeça, olha novamente, toma coragem e pergunta:

¿ Por que o seu tem três listras e o meu tem quatro?

Depois de ouvir a breve explicação sobre marcas e pirataria, pergunta se é difícil conseguir o original e decreta:

¿ Quando eu for lá fora, vou dar um jeito de comprar.

¿Lá fora¿ é o mundo além dos portões do campo de refugiados de Fugnido, de onde Thon, de 21 anos, nunca saiu. Nascido e criado em território sob proteção internacional, atingiu há pouco a maioridade como parte de um grupo cuja existência desafia a lógica: a geração de lugar nenhum.

Dezenas de milhares de jovens dos campos da Etiópia vivem nesse estado de identidade suspensa, vítimas de uma guerra que tem quase a sua idade. Nunca estiveram no Sudão de onde fugiram seus pais ¿ o que tecnicamente não permitiria sequer que fossem chamados de refugiados. E, de todas as dúvidas que pairam sobre o destino dos habitantes dos campos etíopes de Fugnido, Bonga e Dimma, o futuro dessa geração é a maior incógnita.

¿ Como esperar que eles se adaptem a uma terra que até seus pais vão ter dificuldade de reconhecer na volta? ¿ pergunta Wella Koyou, diretor do subescritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em Gambella, Etiópia. ¿ O temor é que muitos voltem aos campos ou se tornem ilegais, em busca de outra vida em países ricos.

Cerca de cem bebês por mês nos campos

Em Bonga, por exemplo, os jovens de até 18 anos são cerca de 36% dos cerca de 18 mil habitantes. E a tendência é que esse e os outros campos etíopes tenham população cada vez mais jovem: neles nascem em média cerca de cem bebês por mês.

¿ O índice de natalidade é alto, entre outros motivos porque eles pensam que reproduzir é garantir que sua etnia não saia perdendo na balança demográfica na volta para casa ¿ diz Tamrat Ayela, administrador da ONG Save the Children em Bonga.

E continua:

¿ Mas o número de jovens acaba se tornando um desafio. Precisamos pensar no que fazer com eles num ambiente permeado pelo tédio ¿ afirma, lembrando que a frustração e o ócio podem terminar jogando-os na criminalidade.

Uma das estratégias é tentar mantê-los pelo maior número de horas na escola. Fora das salas de aula há muito pouco a fazer nos campos, além do futebol e de outros jogos como cartas, dama e dominós. Namoros são desestimulados pela cultura de algumas das etnias sudanesas presentes nos campos, e casamentos costumam acontecer apenas após os 25 anos.

Ayela afirma que muitos dos jovens tentam respeitar a tradição de suas tribos e clãs, mas a identidade que têm com a terra dos pais é alimentada apenas pelas histórias que cresceram ouvindo. E apesar do esforço dos mais velhos para manter as famílias unidas, até o dia de um retorno, é difícil fazer com que adolescentes deixem de sonhar com uma vida longe dos vestígios da guerra. Para eles, a terra prometida não fica no Sudão, mas sim do outro lado do Atlântico, nos EUA e no Canadá ¿ países mais citados como destino de preferência.

Quando se pergunta se sabem o que os esperaria por lá, a maioria nega conhecer alguns dos principais símbolos do mundo globalizado ¿ hambúrgueres, George W. Bush, iPods, Hollywood. Muitos não saberiam sequer identificar um computador. O que não os impede de seguir sonhando.

¿ Quero ir para o Sudão porque lá é minha pátria. ¿ diz Joseph Mokwer, 20 anos, de olho na família, que observa de perto sua entrevista.

Quando o pai se afasta, no entanto, ele muda o tom de voz e a verdade vem à tona:

¿ Me disseram que há minas lá. É verdade, não? O que é que eu faria no Sudão? Eu quero é ir para a América.