Título: Enfrentar a questão central
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 10/12/2006, O Globo, p. 2

Derrubando a cláusula de barreira, o STF não apenas manteve a dispersão do quadro partidário, com o que ela tem de bom (a representação das minorias) e de ruim (as siglas de negócios). Mais do que isso, jogou a classe política numa encruzilhada: ou enfrenta a necessidade de reformar o sistema eleitoral ou estamos feitos.

A Constituinte, que tratou de tantas coisas no atacado e no varejo, não se aventurou a mudar as regras básicas do sistema político-eleitoral que a ditadura freqüentemente tornava mais disforme para atender a seus planos de perpetuação. A Constituinte fez apenas correções e ajustes liberalizantes - destacando-se a extrema facilidade para a criação e funcionamento dos partidos. De lá para cá, o esforço pela reforma política esbarra sempre na resistência de um difuso "núcleo duro" da elite política à mudança fundamental, a do modo de votar. É vasto o arsenal de argumentos, aparentemente lógicos, inteligentes e democráticos, em defesa deste sistema que temos, o de voto proporcional em lista aberta, que vem a ser o voto nas pessoas, e não nos partidos políticos, em tese os canais de organização e expressão política de uma sociedade democrática. O voto personalista leva à infidelidade partidária, que leva ao aluguel de mandato, ao fisiologismo e à dificuldade de se formar maiorias parlamentares. Leva à falta de controle dos eleitores sobre seus representantes, ao caixa dois para financiar campanhas, à corrupção, aos sanguessugas, aos mensalões. Os escândalos recentes geraram alguma consciência sobre a conexão entre corrupção e sistema político. A cretinice de uns e a ambição de outros não explicam tudo.

Contra o voto em lista fechada, adotado pela maior parte dos países onde a democracia merece o nome, tem se dito que ele privaria o eleitor de escolher seu representante e que viria para fortalecer os caciques partidários, como se eles já não tivessem o poder de escolher as "nominatas", as listas daqueles que terão a legenda para disputar o mandato. O que se aprecia neste nosso sistema é a lei da selva nas eleições, quando cada um vai à luta por dinheiro e por votos e, depois de eleito, faz o que bem entende com o mandato, não tendo que prestar contas nem ao partido nem ao eleitor.

Mas, ainda que ninguém aceite o voto em lista, pode-se tentar outros caminhos, como o voto distrital puro ou misto. Esses modelos também são melhores que o nosso. Com cada partido lançando apenas um candidato a deputado em cada distrito, teríamos campanhas mais baratas, mais transparência, mais controle do eleitorado sobre seu representante.

A cláusula era um instrumento a serviço dos que não querem enfrentar a necessidade de uma reforma política mais ousada. Com ela, viria a redução do número de partidos, seria adotada uma regra de fidelidade partidária que acabaria sendo artificial (pois, se o mandato é pessoal, para que seguir o partido?), talvez um financiamento público de campanhas, e olhe lá. A barreira funcionaria - como funciona em outros países - se o voto fosse em listas fechadas, ou seja, em partidos, não em pessoas. Sem ela, de duas uma: ou fica tudo como está, esta festa partidária de 22 siglas no Congresso, juntando programáticos como PPS, PV, PSOL, PCdoB com nanicos de aluguel criados para alcançar o dinheiro do fundo partidário e a TV de graça; ou então nossos dirigentes políticos tomam coragem e enfrentam a questão central, que é a do sistema eleitoral.

O assunto é do Congresso, tem dito o ministro Tarso Genro. Mas o governo, que está aí batalhando uma coalizão exatamente porque o sistema complica a tarefa de governar, pode fazer a sua parte. Pode tornar a reforma política (a verdadeira) um ponto programático da coalizão.