Título: Manipulação e condescendência com o ócio
Autor: Bermudes, Sérgio
Fonte: O Globo, 15/12/2006, Opinião, p. 7

AConstituição da República, no art. 231, reconhece aos índios a sua organização social, seus costumes, suas línguas, crenças, tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Quanto às terras, a norma impõe à União federal o encargo de ¿demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.¿

A primeira indagação que se faz, no Brasil e em outros países, onde se determina a proteção de populações indígenas, envolve o conceito de índio. Samuel Hoar, notável advogado de Boston, infelizmente falecido, costumava contar que, na hora de identificar índios, para assentamento e outros benefícios, enfrentaram-se problemas de qualificação, tanto mais graves quanto certas pessoas se habilitavam a terras e outros bens, na base da conjectura: ¿I think my grandparents were indians¿ sem maior fundamento.

O fenômeno do reconhecimento da condição de índio mediante a mera autodefinição ocorre também no Brasil. Uma visita a comunidades de pessoas que se proclamam índios mostrará gente que, com toda a certeza, não cabe nessa figura. ¿Índios¿ de olhos verdes e tez clara; ¿índios¿ incapazes de tartamudear meia dúzia de palavras de qualquer dialeto indígena; ¿índios¿ ignorantes das suas origens; ¿índios¿ que não conseguem recordar rudimentos das tradições da sua alegada tribo, para não falar em ¿índios¿ que sequer sabem dizer qual a sua nação e qual a sua tribo; ¿índios¿ motorizados em veículos de primeira linha, como automóveis ¿Volvo¿; ¿índios¿ habitantes de casas de alvenaria dissimuladas sob cobertura de palha, para darem impressão de que são ocas de uma taba.

A Constituição preferiu deixar a definição de quem seja índio a normas infraconstitucionais, redigidas com subsídios de antropólogos, historiadores, sociólogos, geógrafos e juristas, entre outros. Mas a proteção de populações indígenas implica determinar a ocupação tradicional de terras, habitadas em caráter permanente. Comprovam-se com relativa facilidade essas tradições e ocupação, a partir das quais o governo federal demarca as terras indígenas. Convém atentar para o fato de que, quando a Constituição fala na demarcação das terras, ela pressupõe porções de território já ocupadas pelos índios. Não se trata, pois, de escolher, separar e estremar uma área, para, em seguida, nela se assentarem índios.

O propósito da demarcação de áreas, constitucionalmente prevista, tem por pressuposto a ocupação atual dessas áreas, por tribos indígenas, no que subsistiram. Demarca-se, então, o que está ocupado; não o que esteve ocupado. A Constituição é muito clara, neste ponto, no art. 231 e nos seus parágrafos. Define-se a extensão ocupada e depois se procede à demarcação dela, sem se criarem espaços novos, nem mesmo mediante a renovação de ocupações pretéritas. A demarcação limita-se ao que está habitado e não atinge as circunvizinhanças. É, se se permite a analogia um tanto primária, como se se colocasse a moldura num quadro.

Parece que muitos índios arvoram a condição de titulares de vastíssimas áreas de terras, a partir do fato de que, ao menos provavelmente, elas pertenceram a seus ancestrais. Nessa base, parte significativa do país deveria ser entregue aos autodefinidos sucessores das nações que já viviam no Brasil, quando do seu descobrimento, como não quer a carta política.

Invocando o direito de ocupação de terras que nunca habitaram, ou que só habitaram numa porção, os índios, ou quem faz suas vezes, invadem áreas produtivas, em mãos de particulares com título de domínio. Ocupadas, eles as exploram exaustivamente por todos os meios possíveis, com a destruição de plantações e tudo o quanto que de algum valor ali se haja erguido. Não adianta recorrer à Justiça, mediante ações possessórias contra esses esbulhos ou turbações. Obtidas e cumpridas as liminares, os índios recuam, momentaneamente, para logo reiterar as investidas.

Ai de quem denunciar o descompasso entre a vontade da Constituição e a situação real dos índios, exorbitante dos limites nela fixados. Qualquer crítica será tachada como ato de hostilidade aos índios, senão de genocídio. Não se trata disso. Na verdade, quando se pretende que se circunscrevam as terras indígenas, a fim de que ali vivam os seus habitantes tradicionais com todos os seus bens, o que se está fazendo é pedir a adoção de medidas favoráveis aos índios que, fora de áreas delimitadas, se dispersarão, se miscigenarão e perderão a sua identidade cultural. Isto precisa ser evitado.

Não basta que as ¿ONGS¿, ou a Igreja, assumam a defesa indiscriminada de quaisquer interesses ditos indígenas. Louvável embora a intenção delas, é preciso dizer, de modo franco e leal, que elas prejudicam os índios verdadeiros, quando se recusam a ver a realidade, ainda que se lhes abram as melhores oportunidades de verificação. Partem de uma petição de princípio, dando por provado o que está por provar-se: tudo o que, por autodefinição, se pretender indígena será protegido, sem maiores indagações. A defesa pura e simples de pessoas e ajuntamentos indígenas, longe de concorrer para preservá-los, produzirá efeito contrário ao pretendido. Algumas empresas também cometem o erro de fazer, indiscriminadamente, doações em dinheiro para a proteção desorganizada de índios. Freqüentemente, essas dádivas acabam no bolso de pessoas que as usam em proveito próprio, sem qualquer benefício para a coletividade nativa.

Se o governo brasileiro não cumprir, com toda a urgência, o mandamento constitucional de demarcação das terras dos índios, as populações indígenas acabarão, irremediavelmente, por espalhar-se, misturar-se, desfigurar-se, perder a sua identidade, as suas tradições, a sua cultura, que a Constituição se empenha em proteger. Não se quer, evidentemente, um confinamento dos índios. É claro que ninguém se opõe à integração deles à sociedade. Cuida-se, isto sim, de criar espaços definidos onde se possam perpetuar as tradições, os hábitos, a língua indígenas. Abstendo-se, perigosamente, da demarcação das áreas indígenas, a União federal desfigura e aniquila, de modo irreversível, a mais antiga das culturas do Brasil, fadada, então, a definhar-se e desaparecer, sem volta possível. A política do governo, através da Funai, e a atitude de todos os envolvidos e interessados deverá ser, não de condescendência com o ócio, a mistificação, a manipulação, porém de proteção efetiva.

SÉRGIO BERMUDES é advogado.