Título: A despedida melancólica de uma legislatura
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 17/12/2006, O País, p. 0

Para especialistas, aumento de 90,7% dos subsídios mostra desprezo de parlamentares pela opinião pública

Aprovado na quinta-feira, a poucos dias do início do recesso parlamentar, o aumento de 90,7% dos subsídios de deputados e senadores foi o último ato de uma legislatura marcada por escândalos e descrédito com a opinião pública. A medida ¿ que elevará os gastos do Congresso em R$173 milhões por ano ¿ coroou um período a ser lembrado pelo fisiologismo explícito, que alçou o ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) do baixo-clero à presidência da Câmara, e pela absolvição de mensaleiros e sanguessugas.

Na opinião do antropólogo Gilberto Velho, da UFRJ, o reajuste dos próprios salários muito acima da inflação foi uma prova definitiva do desprezo dos parlamentares pela necessidade de gastar melhor o dinheiro público.

¿ O aumento confirma a pior imagem que se tem dos políticos: gente que legisla em causa própria e não se interessa pelos problemas do país ¿ critica.

¿Severino não foi reeleito, mas seu espírito está vivo¿

Autorizada pelos presidentes da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a medida servirá, para Velho, como desestímulo à entrada de jovens na política. Ele adverte ainda que os prejuízos podem ir além das esferas de poder.

¿ Embora o aumento não seja ilegal, tem caráter de corrupção, porque o país sofre com a falta de recursos para serviços básicos como saúde e educação. Como cobrar um comportamento ético dos jovens diante desse exemplo dos políticos? ¿ questiona.

O cientista político Marcus Figueiredo vê no reajuste a vitória da agenda corporativista que, no ano passado, levou Severino Cavalcanti ao comando da Câmara. Desta vez, coube ao deputado Inocêncio Oliveira (PL-PE) celebrar, ao fim da reunião: ¿Habemus aumento!¿

¿ Severino não foi reeleito, mas seu espírito está mais vivo do que nunca ¿ alerta.

O diretor de pesquisas do Iuperj avalia que a medida pode ter garantido, por antecipação, a permanência de Aldo e Renan no controle do Parlamento. Para Figueiredo, o aumento lança uma perspectiva sombria sobre os próximos quatro anos, depois da legislatura que ele define como a pior após a ditadura militar.

¿ Nem o Congresso eleito em 1962, que sofreu cassações e foi obrigado a abaixar a cabeça para os militares, foi tão ruim quanto este ¿ condena.

Concedido menos de três meses depois das eleições, o reajuste dos subsídios foi uma recompensa inversamente proporcional ao desempenho dos parlamentares empossados em 2003, avalia o diretor da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo.

¿ Está cada vez mais difícil manter a convicção de que a atividade legislativa é importante para o país, de que a política é essencial para o funcionamento da sociedade. O que a maioria dos deputados e senadores mostra é que está lá para se locupletar ¿ critica.

¿Assistimos ao fracasso da cidadania¿, diz antropólogo

A apatia apontada por Abramo é confirmada por Gilberto Velho que, em 1992, acompanhou de perto a luta pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. Para o antropólogo, aquele foi o último momento de ¿mobilização cidadã¿ vivido no país.

¿ Estamos assistindo ao fracasso da cidadania, que pressupõe o exercício de direitos e deveres e a pressão sobre os políticos. Perdemos a capacidade de nos organizar ¿ lamenta.

A cientista política Alessandra Aldé, da Uerj, pondera que a indignação com o aumento ¿ manifestada por sindicatos, associações e movimentos sociais ¿ não chegou às ruas porque os brasileiros já esperam más notícias dos políticos. Ela lembra que a crise da representação parlamentar é mundial, mas diz que, no país, o problema se agrava com a falta de informações sobre o dia-a-dia do Legislativo.

¿ O eleitor precisa aprender a acompanhar e fiscalizar a atividade rotineira dos parlamentares ¿ afirma.