Título: Revolta generalizada
Autor: Peña, Bernardo de la e Freire, Flávio
Fonte: O Globo, 16/12/2006, O País, p. 3

Praticamente todos os setores da sociedade criticam o Congresso pelo aumento dos subsídios

Um dia depois de os parlamentares aprovarem um aumento de 90,7% em seus próprios subsídios ¿ de R$12,7 mil para R$24,6 mil mensais ¿ praticamente todo o país atacou a decisão, que, na opinião de trabalhadores, sindicalistas e empresários, põe em xeque a credibilidade do Congresso.

¿ O Congresso, por sua visibilidade, deveria dar o exemplo. Que moral esses parlamentares terão na hora de votar pela contenção de gastos públicos? ¿ indagou o diretor do Departamento de Economia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Francini, para quem a decisão desgasta ainda mais ¿a imagem já denegrida do Congresso¿.

A Central Única dos Trabalhadores (CUT), em nota, a entidade ironizou os ¿nobres deputados¿, dizendo que eles deveriam lutar por mais recursos para projetos sociais. A decisão, segundo a central, apenas serve para estimular o efeito cascata nos estados e municípios. ¿É uma bofetada no povo e na democracia brasileira. Estamos analisando a possibilidade de ações jurídicas contra esse despropósito¿.

O vice-presidente da Força Ativa dos Servidores, Eduardo Mendes, que congrega 40 sindicatos de funcionários públicos do Estado do Rio, reagiu com indignação à manobra.

¿ Se não fossem as gratificações de encargos especiais, o servidor estaria ganhando salário mínimo. Isso é um escárnio, a indignação é total.

A Firjan divulgou nota oficial em que critica a forma como foi concedido o aumento. A diretoria se diz ¿perplexa¿. ¿Não pelos parâmetros salariais, mas pela forma como foi conduzido o processo que levou a esse aumento: em final de legislatura e sem nenhuma consulta à sociedade¿.

Boneco de Aldo em desfile

Para quem não tem sequer a certeza de receber salário no fim do mês, a concessão do aumento soou como puro desdém:

¿ A gente tem contato direto com gente que só consegue ver os salários achatados, que muitas vezes sobrevive apenas com benefícios sociais complementares. Os políticos se esquecem que representam o povo. Representam a si mesmos apenas ¿ disse Débora Rodrigues, da Central Única de Favelas (Cufa).

O diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ennio Candotti, endossou as críticas.

¿ É uma ameaça às instituições. Cria um descrédito generalizado. E se o povo perde a confiança nas instituições a democracia está desmoralizada. Num país em que se debate aumento em conta-gotas aos assalariados, assistir a reajuste para R$25 mil sem explicação é uma violência.

Associados da Confederação Nacional de Lutas, ligada à CUT, criaram um boneco de dois metros do presidente da Câmara, Aldo Rebelo, e desfilaram por São José dos Campos (SP).

¿ Também usamos nariz de palhaço porque é isso que os políticos devem achar que somos ¿ afirmou o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos da cidade, José Donizete de Almeida.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Marco Aurélio de Mello, comentou o reajuste com ironia.

¿ Felizes são aqueles que podem se autoconceder aumentos. A Constituição cogita da fixação dos subsídios dos deputados estaduais a partir do que recebem os integrantes do Congresso. Toda vez que uma categoria alcança um patamar remuneratório mais satisfatório, a tendência é outros segmentos reivindicarem.

O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, também criticou o aumento.

¿ Só espero que eles possam se virar com o orçamento do Legislativo, porque, caso contrário, seria uma disputa injusta com necessidades tão importantes da sociedade brasileira, como a discussão do salário mínimo, a correção da tabela do IR e o investimento em infra-estrutura e no social. Penso que o aumento está um pouco descolado da realidade brasileira.

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, o Congresso ¿virou as costas¿ para o povo.

¿ O Congresso deveria ser a caixa de ressonância da sociedade. No entanto, se transformou na caixa de ressonância da imoralidade. É lamentável ver o dinheiro público gasto dessa forma, num trem da alegria no fim de uma legislatura marcada por atitudes antiéticas e, agora, imorais.

Embora tenha tentado evitar a polêmica recorrendo ao ditado ¿em festa de jacu, nhambu não entra¿, outro ministro do TSE, José Gerardo Grossi, classificou como inadequada a decisão do Congresso. Para ele, a equiparação fará com que deputados e senadores passem a ganhar muito acima do teto, com as verbas adicionais que os ministros do STF não têm.

¿ Se levar em consideração o teto, está estourado. Eles têm complementação salarial muito alta, um mundo de coisas sem as quais o cidadão comum tem de viver. Considero insustentável a posição do Parlamento.

Marco Aurélio acha que o teto do funcionalismo serviu apenas de inspiração para os parlamentares.

¿ O que é recebido pelo ministro do Supremo, e nós somos 11 e eles são 513 deputados e 81 senadores, foi tomado de empréstimo, simples inspiração para fixação do novo subsídio.

Em nota, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Geraldo Majella, disse que o reajuste aumenta a distância entre os legisladores e o povo. ¿Um salário de R$24.500, diante do salário mínimo de apenas R$350, sinaliza mais interesses particulares do que a defesa da Justiça ou gesto de partilha em solidariedade à população empobrecida¿, indaga a CNBB. ¿Precisamos de instrumentos legais para inibir decisões como esta. Pedimos neste Natal a luz de Cristo para o nosso país, para a nossa democracia¿.

A União Nacional dos Estudantes também criticou a decisão. ¿A UNE desafia esses mesmos parlamentares a conceder tal aumento, de mais de 90%, ao minguado salário mínimo que sustenta boa parte do povo¿.

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