Título: Fantasmas no paraíso
Autor: Azevedo, Ana Lucia
Fonte: O Globo, 16/12/2006, O Mundo/ Ciência e Vida, p. 45

Ilha de Arraial do Cabo famosa pela beleza de sua praia guarda herança de povo extinto da pré-história

Existe um lugar onde o Atlântico faz a curva numa esquina do Brasil. Um lugar onde a natureza guarda a generosidade do tempo da chegada dos primeiros europeus, pelos idos de 1500. Ele preserva até lembranças mais remotas, legado das primeiras pessoas a pisarem nessa terra. Uma gente do mar extinta há cerca de dois milênios, mas que vez por outra emerge numa praia varrida pelo vento. O lugar é a Ilha do Cabo Frio, em Arraial do Cabo, uma ponta de terra que avança mar adentro. Foi lá que há poucas semanas turistas observavam admirados arqueólogos escavarem na praia o esqueleto de um sambaquieiro, nome dado aos povos que se estabeleceram há sete mil anos no litoral brasileiro, sobreviveram por cinco mil até serem extintos há cerca de dois milênios, muito provavelmente devido à invasão dos mais poderosos guerreiros tupis e jês, vindos do Norte.

À frente da equipe que estuda os sambaquieiros da Ilha do Cabo Frio está a arqueóloga Maria Cristina Tenório, do Museu Nacional. Há décadas ela se dedica aos sambaquis e desde os anos 90 escava os encontrados em ilhas. Os da ilha do Cabo Frio, também conhecida como Ilha do Farol, estão muito bem preservados devido ao status especial do lugar, com acesso controlado pela Marinha.

O trabalho reúne equipes do Museu Nacional, do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM) e do Museu de Arqueologia e Etnografia da USP. Só barcos autorizados podem atracar junto à praia da ilha, por mais de uma vez eleita a mais perfeita do Brasil. E é nesse cenário de águas transparentes, areias brancas e encostas cobertas pela Mata Atlântica que arqueólogos, antropólogos físicos, geólogos e outros especialistas reúnem os vestígios de povos dos sambaquis.

Na praia, uma criança milenar

Esses vestígios contam uma história perdida muito antes dessa terra ser chamada de Brasil. São ossos baleias e golfinhos trabalhados, instrumentos de pedra, restos de fogueiras e esqueletos ¿ raridades devido à acidez do terreno que dificulta a conservação.

E foram justamente dois esqueletos que mobilizavam a atenção dos cientistas no final de novembro. Um deles chamava a atenção por ser de uma criança, que não teria mais que 7 anos ao morrer. Achados assim são ainda mais raros, os ossos frágeis dificilmente resistem ao tempo. Mas a criança do sambaqui situado logo atrás da Praia da Ilha do Cabo Frio é uma exceção. Seu corpo se manteve por 3.200 anos e foi sepultado junto do de um adulto, com o rosto voltado para o chão.

¿ Imaginamos que seja uma posição ritual. O esqueleto dessa criança é tão frágil, que precisa ser retirado com extremo cuidado. Ele é quase uma sombra no solo ¿ diz Maria Cristina, ao limpar com um pincel os ossos do crânio munida de extrema paciência, sem se importar com a terra preta que cobre seu rosto e corpo.

Persistência e paciência são indispensáveis aos pesquisadores, submetidos ao calor e ao vento incessante. O grupo de Maria Cristina trabalha nesse sambaqui desde 2004 e suou muito até fazer a descoberta. A alguns metros de onde está a criança, a equipe se anima com o achado de outro esqueleto. Ele está num sambaqui colado à praia. Turistas mergulham ou caminham pela areia e poucos se dão conta do crânio que começa à emergir sob pincéis e instrumentos dos pesquisadores. Estes supõem que o vento forte que soprou por dias ajudou a desenterrar o crânio, num lugar onde já foram encontrados restos de fogueiras, sepultamentos e ossos de animais.

¿ Datamos o carvão e tenho datas que mostram que esse lugar foi ocupado de 2.200 a 1.200 anos atrás. Encontrei uma estrutura de cremação intacta, caso raríssimo, de onde tirei material e mandei datar nos EUA, mas ainda não tenho o resultado. Essa estrutura é formada por ossos humanos carbonizados e carvão, num ritual específico de sepultamento. Essa pessoa foi deixada aqui entre 2.200 a 1.200 atrás ¿ diz a arqueóloga.

Alguns turistas se aproximam e olham o crânio com admiração. Alguns perguntam se é um fóssil. Não, é um esqueleto pré-histórico (fósseis são mineralizados, num processo muito mais antigo), respondem os cientistas, que pedem aos turistas para se afastarem, pois a área do sambaqui tem acesso restrito. Tal cuidado é necessário para evitar a depredação.

¿ Há um trecho do sambaqui submerso com o passar dos séculos e que está agora a poucos metros de profundidade, junto à praia. Por vezes, turistas acham ossos e instrumentos arqueológicos. É por isso que o acesso precisa ser controlado ¿ explica o geólogo comandante David Canabarro Savi, do IEAPM.

Os cientistas não têm dúvidas de que o o crânio é de um povo extinto.

¿ Certamente não é de alguém que viveu em tempos históricos ¿ explica Maria Cristina ¿ Sabemos que não é atual pelas características físicas, como o formato dos dentes (incisivos frontais em forma de pá).

O antropólogo físico Andersen Lyrio observa que o crânio parece ser de uma mulher, mas só uma análise mais detalhada poderá confirmar.

As descobertas da Ilha do Cabo Frio são capítulos de uma longa saga do litoral. Por milênios, a costa do estado do Rio foi ocupada pelos sambaquieiros, que viviam da pesca, da coleta e da caça de pequenos animais. Pouco se sabe sobre eles, mas Maria Cristina diz que toda a área da Restinga de Massambaba, do Pontal do Atalaia e da ilha integrou um dia uma mesma cultura, com rituais próprios.

¿ A ilha foi alcançada por canoas. Não deve ter sido muito difícil vencer o Boqueirão (nome do canal de 130 metros que separa a ilha do continente). Aqui eles encontraram boas condições de sobrevivência e se estabeleceram ¿ diz ela, cuja pesquisa conta com o apoio do CNPq, da Faperj e do IEAPM.

Tempos de abundância

As condições parecem ter sido tão boas que grupos maiores viveram por lá. Os sambaquieiros formavam grupos familiares pequenos, mas na Ilha do Cabo Frio há indícios de locais habitados por até 300 pessoas. A abundância de alimentos conta aos cientistas ainda uma outra história, desta vez a da própria natureza. Golfinhos e baleias são personagens centrais. Quem os estuda é biólogo Pedro Castilho, que desenvolve pós-doutourado no Museu Nacional sob a supervisão de Maria Cristina.

¿ Pensávamos que estavam relacionados a rituais, no entanto, nossos resultados sugerem que a caça aos golfinhos e baleias era tão importante como a pesca ¿ afirma a arqueóloga.

Outra questão é a distribuição das espécies. Foi encontrada em sítios com mais de 3.000 anos no Rio de Janeiro uma espécie de golfinho que só irá aparecer no sul do país muito mais tarde.

¿ Os sítios arqueológicos são tesouros de informação. Precisamos protegê-los ¿ frisa Maria Cristina, cujo sonho é criar um museu do homem e da paisagem, para reunir os resultados de todas as pesquisas realizadas em Arraial do Cabo relacionadas ao meio ambiente e sua transformação pelo homem.