Título: Colombianos se refugiam da guerra no Brasil
Autor: Gripp, Alan
Fonte: O Globo, 17/12/2006, O País, p. 16

Marcados para morrer pelos grupos armados na Colômbia, cerca de quatro mil já buscaram abrigo no Amazonas

LETÍCIA (Colômbia), TABATINGA (AM) e MANAUS. Refugiados da cada vez mais sangrenta guerra civil colombiana estão migrando para o Brasil, através da selva amazônica, por acreditarem que aqui estarão distantes do alcance dos grupos armados que há quase meio século travam uma batalha pelo poder no país vizinho. Nos últimos anos, pelo menos quatro mil colombianos cruzaram a fronteira pelo município de Tabatinga (AM), mas esse número pode chegar a dez mil. Deixaram suas cidades porque estão marcados para morrer ou para impedir que seus filhos, a partir dos 10 anos, fossem recrutados à força para atuar como soldados.

Durante os últimos três meses, O GLOBO acompanhou o trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU) para receber os refugiados que chegam ao Brasil. Semana passada, localizou dez famílias colombianas que vivem na fronteira entre os dois países ¿ em Tabatinga e na cidade colombiana de Letícia ¿ e em Manaus, destino da maioria dos imigrantes. Em relatos que serão mostrados a partir de hoje em uma série de reportagens, eles revelam a crueldade de uma guerra que o Brasil pouco conhece, a solidão e a miséria no exílio.

Na fronteira, não fosse por uma placa minúscula e pela mudança da língua nos letreiros do pobre comércio, seria difícil saber onde termina a Colômbia e começa o Brasil. Entre Letícia e Tabatinga não há controle do fluxo de pessoas. Mas isso está longe de significar que a entrada quase diária dos refugiados colombianos seja simples. Sem dinheiro, não têm condições de seguir viagem. Passam semanas na região escondidos, por temerem a presença de informantes dos grupos armados.

Imposto para compra de armas

Todos os refugiados entrevistados serão identificados por nomes fictícios, pois, embora a guerrilha não controle a região da selva próxima a Tabatinga, eles têm medos dos informantes das facções. Nas zonas colombianas controladas pelas organizações ¿ quase metade do país ¿ os guerrilheiros possuem registros de todos os moradores das áreas que controlam, segundo os refugiados.

Quando o GLOBO deixava Tabatinga, quinta-feira, encontrou o artesão Carlos, de 43 anos, último colombiano a pedir refúgio ao governo brasileiro. Ele estava escondido dentro da Igreja Matriz de Tabatinga, com medo dos informantes da guerrilha. Carlos foi expulso da cidade de Bolivar de Antióquia, perto de Cartagena, pelos paramilitares de extrema-direita por não ter pago a vacuna, o imposto da guerra. Os guerrilheiros exigem que todos os trabalhadores da comunidade paguem dízimos para compra de armamentos. Doente e sem trabalho, Carlos não tinha dinheiro e seu nome foi incluído nas listas dos moradores marcados para morrer.

¿ Passo o dia inteiro escondido no rancho de uma pessoa que me hospedou. Os paramilitares trocam informações em todo o país ¿ revela Marcos.

O artesão viajou um mês até a fronteira. No caminho, foi agredido por policiais e quebrou três costelas. Em Tabatinga, pediu ajuda à pastoral do migrante para dar entrada na documentação, receber tratamento e seguir viagem. Não sabia para onde ir, mas sabia para onde não voltar.

¿ Vou pedir ajuda da Igreja para achar um lugar. Sou sozinho, não tenho nada mais que me prenda à Colômbia.

Em Tabatinga, a grande maioria dos moradores não sabe que a cidade é cenário de um fluxo migratório regular de colombianos. Eles chegam a Letícia de barco, em viagens que podem durar uma semana, ou nos aviões cargueiros que saem da capital Bogotá. Uma vaga clandestina nas aeronaves pode custar até R$200, muito para quem normalmente deixou sua cidade natal com a roupa do corpo.

Embora seja uma das poucas áreas não controladas pela guerrilha, a região próxima à Tabatinga ainda oferece perigo e não tem empregos. Quase 10% da população de Letícia e Tabatinga trabalham como mototaxistas, principal meio de transporte da cidade. Sem dinheiro e desesperados, os refugiados são presas fáceis para os traficantes que atuam na fronteira, que lhes oferecem a passagem de barco para Manaus em troca do transporte de cocaína. Na penitenciária de Tabatinga, 75% dos presos (160) têm esse perfil.

¿ Todos que viajam ou precisam viajar para Manaus são tentados a transportar drogas, mas uma hora um cai ¿ diz um integrante da pastoral carcerária de Tabatinga, que faz visitas regulares aos presos, a maioria peruanos e colombianos.

A saída para quem pensa em permanecer na fronteira é viver em abrigos com acesso difícil, cercados pela selva. É lá que está o chamado ¿sítio dos desplazados (deslocados)¿, onde dez famílias vivem da agricultura de subsistência. Lá, mora há dez meses o agricultor José Guilhermo, que fugiu da província de Santo Domingo com a família para impedir que seu filho, de 20 anos, fosse chamado pelas Farc. Ele ainda não se decidiu se vai tentar a vida no Brasil.

¿ O Brasil me fascina, é um país mais calmo e com uma música maravilhosa, mas minha esposa não quer sair daqui por enquanto ¿ diz ele.

Apavorados, os refugiados chegam à fronteira famintos e com a roupa do corpo. Um grupo que vive em Manaus foi obrigado a deixar o país depois que descobriu um cemitério clandestino. Eles flagraram paramilitares de extrema-direita enterrando corpos de suas vítimas.

Migração ainda sem impacto

As autoridades brasileiras da fronteira cumprem o acordo entre os dois países e recebem os colombianos. Apesar de crescente, a migração ainda não produz impacto social relevante. Mas o Brasil, com os seus problemas econômicos e sociais, não está preparado para recebê-los. Os novos refugiados contam apenas com a ajuda da rede de proteção da ONU, montada através do Alto Comissariado para Refugiados (Acnur), que tem escritório em Brasília. Em Tabatinga e em Manaus, esse trabalho é executado pelas pastorais do migrante, da Igreja Católica, primeira parada de dez entre dez refugiados que cruzam a fronteira. Hoje, o maior desafio da ONU é convencê-los a solicitar formalmente a condição de refugiado, o que lhes garante direitos de um estrangeiro que reside legalmente no país.