Título: Os judeus ortodoxos que chocaram Israel
Autor: Malkes, Renata
Fonte: O Globo, 17/12/2006, O Mundo, p. 42

Com apoio a conferência no Irã que questionou o Holocausto, seita Naturei Karta gera chuva de críticas e chama atenção do mundo

TEL AVIV. Além de irritação, o polêmico congresso sobre a veracidade do Holocausto realizado semana passada no Irã provocou em Israel uma avalanche de críticas sobre a postura do grupo de judeus ortodoxos convidados para participar do evento pelo presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad. Os Naturei Karta (guardiões da cidade, em aramaico) se sentem donos da judaísmo, da cidade sagrada de Jerusalém ¿ à qual seu nome se refere ¿ e pela primeira vez na história. Eles não só se colocam publicamente contra o Estado de Israel mas demonstram apoio a um de seus maiores inimigos, declarando uma guerra quase santa contra segmentos do judaísmo em Israel e no mundo.

Existência de Israel só com a chegada do Messias

O Naturei Karta é um movimento ortodoxo nascido de judeus húngaros e lituanos que se estabeleceram na cidade velha de Jerusalém no século XIX, fugindo das perseguições na Europa. Segundo estimativas, há cerca de cinco mil Naturei Karta espalhados pelo mundo, sobretudo em Nova York e Jerusalém. Dizendo-se fiéis às orientações religiosas da Bíblia, seus membros se tornaram inimigos da ideologia sionista-trabalhista que culminou com a criação de Israel, em 1949. Para eles, Israel só poderá existir com a chegada do Messias. Fiéis aos escritos, para eles o idioma hebraico é tão sagrado que não pode ser usado no dia a dia. Seus discípulos usam o ídiche e muitos são letrados no velho aramaico dos livros de estudos e orações.

Em Israel, vivem ao menos 500 representantes do Naturei Karta no bairro ortodoxo de Mea Shearim. Curiosamente, mesmo em solo israelense, se negam a ter carteira de identidade e preferem abrir mão da cidadania, mantendo apenas um visto de permanência no país. Vivendo uma vida de pobreza e orações, não servem ao Exército, não participam da vida social fora de sua comunidade e recebem do governo um subsídio mensal para a subsistência. Seu extremismo é condenado até por outros segmentos ortodoxos de Israel. Para o rabino-chefe de Israel, Yona Metzger, a aparição em Teerã foi a gota d¿água. Segundo ele, a seita vem denegrindo a imagem do judaísmo.

¿ Eles traíram o povo judeu, sobretudo quando se aliam aos que renegam o Holocausto. Seu comportamento humilhante tentou manchar a imagem do povo judeu. É preciso boicotá-los, pois trata-se de uma minoria que não nos representa de forma alguma ¿ disse Metzger.

Segundo o professor Menachem Friedman, do departamento de Sociologia da Universidade Bar Ilan, um dos maiores pesquisadores do judaísmo ortodoxo em Israel, os membros do Naturei Karta não renegam o Holocausto. Para Friedman, a viagem a Teerã e o caloroso encontro com Ahmadinejad não são demonstrações de anti-semitismo, mas de uma maneira de pressionar a opinião pública e o Estado judeu diante do mundo árabe. Ele ressalta que o episódio é apenas mais um dos conflitos pelos quais passa a identidade judaica. Por outro lado, o pesquisador lembra que há milhares de casos de judeus que vivem numa cultura judaica, em Israel, falando hebraico, servindo ao Exército, mas que, por não terem nascido de uma mãe judia ou se convertido de acordo com a ortodoxia, não são reconhecidos por Israel como tal.

¿ Este é um bom exemplo das contradições e discussões que existem sobre ser judeu nos dias de hoje. Os Naturei Karta renegam a existência de Israel por questões religiosas. Para eles, Israel só será uma nação quando o Messias, o salvador, chegar. Para eles, este é o judaísmo correto, verdadeiro e único. Sentem-se guardiões da verdade. A participação num congresso como esses visa a humilhar e renegar um Estado que, para eles, não tem o direito de existir de acordo com a lei divina. Diante das posições de Ahmadinejad, que diz abertamente estar disposto a varrer Israel do mapa, os Naturei Karta identificaram e aproveitaram um excelente parceiro ¿ disse Friedman.

Arafat nomeou membro da seita como ministro

Ridicularizados por judeus seculares, conservadores e por outros setores da ortodoxia, os Naturei Karta conseguem irritar os israelenses com uma atrapalhada mas bem sucedida estratégia de marketing. Mesmo sendo um grupo pequeno, chamaram a atenção nos últimos anos com manifestações anti-Israel em Nova York, entrevistas bombásticas e tentativas de aproximação com o mundo árabe. Há seis anos, o mais importante representante da seita em Jerusalém, o rabino Moshe Hirsh, se aproximou do líder palestino Yasser Arafat e se transformou em ministro para Assuntos Judaicos da Autoridade Nacional Palestina. Alertado por assessores de que Hirsh não era fonte respeitada, Arafat o destituiu do posto meses antes de sua morte.