Título: Índia, a maior democracia religiosa do mundo
Autor: Costa, Florência
Fonte: O Globo, 17/12/2006, O Mundo, p. 43

Apesar do fundamentalismo que ameaça a paz em várias regiões, país consegue equilíbrio relativo entre religiões

BOMBAIM. Democracia é literalmente uma palavra sagrada na Índia. Com seus 1,1 bilhão de habitantes, o país cresce mais de 8% ao ano, menos do que o rival e gigantesco dragão chinês. Mas a Índia tem pelo menos duas grandes vantagens em relação à China: a liberdade na política e na religião.

As peças desse mosaico religioso indiano convivem há séculos lado a lado. No geral, os indianos de diferentes crenças conseguem se manter em relativa paz, invejável em tempos de fundamentalismo religioso. Há casos na sua história de choques violentos entre comunidades religiosas. Mas na maioria das vezes trata-se de uma fogueira acesa pelos políticos.

Esse país milenar e berço de quatro religiões: hinduísmo, budismo, jainismo e sikhismo. Além disso, recebeu há séculos o islamismo e o cristianismo. A generosa Índia também deu abrigo a mais duas religiões: o zoroastrismo e o judaísmo. As próprias cores da bandeira indiana sinalizam esse pluralismo: laranja do hinduísmo, verde do islamismo e branco das outras religiões.

O Estado indiano é secular e a Constituição protege as minorias religiosas. Diferentemente de outros caldeirões religiosos, a Índia não tem guetos. Esse formigueiro humano e religioso divide o pouco espaço disponível. É muito comum uma mesma rua abrigar templos de religiões distintas.

Políticos são responsáveis por choques, diz analista

O islamismo desembarcou na terra do hinduísmo no século XIII: uma religião influenciou a outra. Os muçulmanos são minoria, mas numerosos: 14% da população indiana, o que faz do país uma das maiores nações islâmicas do mundo. Como boa democracia que é, o governo indiano tenta melhorar a situação social dos muçulmanos, que amargam baixos índices de escolaridade e são sub-representados em instituições governamentais e em postos da iniciativa privada. A discussão do momento é criar cotas para muçulmanos em setores diversos.

Quando há curto-circuito religioso, geralmente o fogo atinge hindus e os seguidores de Alá.

¿ A violência inter-religiosa na Índia é incitada por políticos. O hinduísmo é bastante tolerante. Até por não ter um deus, os hindus freqüentam templos de diferentes religiões ¿ comentou Aspi Mistry, estudioso de crenças e diretor da Dharma Rain Foundation, uma associação budista.

Ele é outro exemplo dessa tolerância religiosa. Aspi nasceu farsi, povo vindo do Irã, seguidores do zoroastrismo. Decidiu adotar o budismo. Mas não deixa de freqüentar os templos zoroástricos com sua família em datas especiais.

O pior conflito entre religiões ocorreu em 1993, quando mais de mil muçulmanos foram massacrados nas ruas de Bombaim. Foi resultado da tensão gerada com a destruição da mesquita de Babri Masjid por hindus radicais em 1992, no norte da Índia. Um dos locais mais sagrados dos muçulmanos, Babri Masjid foi construída em 1528. A justificativa dos radicais hindus era de que a mesquita havia sido erguida num lugar onde muito tempo antes teria havido um de seus templos sagrados.

Agora em 2006, muita gente temia uma repetição dessa tragédia, após o atentado promovido por fundamentalistas islâmicos nas estações de trem urbano de Bombaim, em julho, quando morreram quase 200 pessoas. Mas não houve conflitos.

¿ No meio daquela tragédia muçulmanos e hindus se ajudavam. Eu tenho amigas muçulmanas e amigos meus hindus também têm. A Índia é um país de portas abertas ¿ diz Youktee Tuli, estudante da Universidade de Bombaim que está fazendo doutorado em budismo.

Youktee é um bom exemplo da mistura religiosa indiana. Ela é meio católica meio hindu, mas decidiu estudar o budismo.

¿ Eu nem sei de que religião sou. O hinduísmo e o budismo para mim não são religiões, mas uma forma de vida ¿ afirmou Youktee.

O hinduísmo assimilou muitas facetas de outras religiões: abandonou o sacrifício de animais, passou a adotar o vegetarianismo e a idéia da não-violência por influência do jainismo e do budismo. O próprio palco político do país hoje é um reflexo dessa democracia religiosa: o primeiro-ministro Manmohan Singh é sikh. A presidente do Partido do Congresso, que lidera a coalizão governamental (o sistema de governo é parlamentarista), é a italiana Sonia Gandhi, convertida ao hinduísmo. O presidente da Índia é o muçulmano Abdul Kalam.

A integração religiosa chega às telas do cinema. Neste ano filmes com histórias que enaltecem deuses hindus foram lançados no mercado indiano. Dois deles, dirigidos por muçulmanos. O desenho animado ¿Krishna¿ (sobre a história desse deus hindu) foi dirigido pelo muçulmano Aman Khan.

¿ Lorde Krishna e um dos mais fascinantes personagens do mundo e eu estou muito orgulhoso de contar sua história ¿ comentou Khan.

Os alegres e inúmeros festivais hindus são freqüentados por gente de todas as crenças. Ninguém resiste à dança, à música, à alegria do povo. Segundo o censo de 2001, mais de 80% da população seguem o hinduísmo; 14% o islamismo; 3% o cristianismo; 2% o sikhismo; 1% o budismo; 0,41% o jainismo; e 0,65% as outras crenças. Nenhuma outra tradição religiosa e tão eclética quanto o hinduísmo, nascido 2 mil anos antes de Cristo. Uma religião que não tem um fundador, nem um livro sagrado como única fonte de inspiração.

Além disso, o hinduísmo abre suas portas para outras divindades e profetas. Mahatma Gandhi, por exemplo, era hindu, mas tinha ancestrais jains e muitos amigos muçulmanos. Um hindu pode reverenciar um ou muitos deuses (e há uma infinidade deles no panteão hindu). Pode freqüentar mesquita, igreja católica, templo hindu ou fazer suas preces em casa mesmo.

Mas o hinduísmo é muito criticado também por ter gerado injustiças como o sistema de castas, que divide os indianos por categorias hierárquicas, apesar de isso ser proibido pela Constituição indiana de 1950.

O cristianismo na Índia tem raízes antigas: São Tomás, um dos apóstolos de Jesus, veio para o sul do país no ano 72, converteu hindus, construiu igrejas, ordenou padres. Em termos de cristianismo a fartura é imensa na terra de Madre Teresa de Calcutá: católicos, metodistas, batistas, presbiterianos e maronitas. Cristãos missionários ocidentais começaram a chegar com São Francisco Xavier em 1542: sua tumba está na cidade de Goa. Recentemente muita gente de casta baixa tem se convertido ao catolicismo para tentar fugir da praga do casteísmo. Os judeus começaram a desembarcar na Índia depois do seculo VI antes de Cristo. Mas foram embora depois da independência do país, quando foi criado o Estado de Israel. Restaram poucos milhares.

O Hino Nacional indiano, composto pelo poeta Rabindranath Tagore (Nobel de Literatura em 1913) é um tributo a essa imensa democracia religiosa. Sua letra diz que hindus, budistas, sikhs, jains, farsis, muçulmanos e cristãos oferecem uma guirlanda de amor para venerar o poder divino.