Título: Forças Armadas cogitaram tomar o poder na Argentina na crise de 2001
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 18/12/2006, O Mundo, p. 21

Documento sobre plano de contingência foi redigido, diz o jornal `Perfil¿

BUENOS AIRES. Em dezembro de 2001, a Argentina foi cenário de uma das crises políticas mais graves de sua história. Dois anos depois de ter assumido o poder, o ex-presidente Fernando de la Rúa havia perdido o controle do país, após adotar medidas econômicas (com destaque para o confisco dos depósitos bancários) que causaram a reação em massa de uma sociedade que saiu às ruas para exigir a sua renúncia. Em meio a uma onda de saques e revoltas sociais, as Forças Armadas cogitaram a hipótese de assumir temporariamente o poder, como única alternativa capaz de normalizar a dramática situação do país.

A informação foi publicada ontem pelo jornal ¿Perfil¿ e confirmada por militares da reserva e José Pampuro, um alto ex-funcionário dos governos Eduardo Duhalde (2002-2003) e Nestor Kirchner. ¿As Forças Armadas trabalharam com a hipótese de que, caso a ação do Congresso não desse certo, ocorreria um vazio de poder e, nesse caso, alguém teria de assumir o governo. Foi elaborado um documento sobre esse plano de contingência. A idéia era atuar como garantia de última instância da ordem e da unidade nacional. Mas nunca se falou num golpe de Estado clássico, com tanques nas ruas¿, disse Pampuro, ex-secretário geral da Presidência durante o governo Duhalde, ex-ministro da Defesa de Kirchner e atual senador pelo Partido Justicialista (PJ).

De acordo com o jornal argentino, na última semana de 2001, quando De la Rúa já havia sido obrigado a renunciar ao poder e o ex-presidente Adolfo Rodríguez Saá (que ficou só uma semana no cargo) governava caoticamente o país, a cúpula militar se reuniu em Buenos Aires para discutir alternativas de intervenção, que começaram a ser elaboradas poucos dias antes. No encontro, revelou o general da reserva e ex-chefe da Casa Militar Julio Hang, ¿predominou a idéia de que a crise era nossa oportunidade, nosso teste de compromisso com a democracia. Não podíamos nos equivocar novamente¿.

Hipótese surgiu às vésperas da renúncia de presidente

As declarações do general da reserva argentino confirmam a intenção dos militares de atuarem durante a crise de 2001, entre outros motivos, para limpar a péssima imagem deixada pela sinistra ditadura (1976-1983), que, segundo organizações de defesa dos direitos humanos, matou cerca de 30 mil pessoas.

Segundo as fontes consultadas pelo ¿Perfil¿, os militares começaram a pensar numa intervenção às vésperas da renúncia de De la Rúa, em 20 de dezembro de 2001. Antes de decretar o estado de sítio no país, na noite de 19 de dezembro, o ex-presidente sondou os chefes militares para saber se as Forças Armadas colaborariam com as forças policiais na repressão de atos violentos. A resposta foi enfática: as Forças Armadas entrariam em ação sempre e quando o Executivo deixasse claro, no decreto assinado pelo presidente, qual seria a duração da medida, as zonas nas quais deveriam atuar e quem estaria à frente das operações. De la Rúa não aceitou as condições impostas, decretou estado de sítio e no dia 20 abandonou o poder, após a morte de cerca de 30 pessoas na capital e na província de Buenos Aires.

Foi então, afirmou o jornal argentino, que as Forças Armadas traçaram um plano de contingência que previa a ocupação temporária do poder. O plano nunca saiu do papel e os militares acabaram sem participação na crise de 2001. Mas o projeto, nunca antes revelado, existiu e poderia ter mudado a história do país.