Título: Sem jaú no lago
Autor: Cruvinel,Tereza
Fonte: O Globo, 23/12/2006, O Globo, p. 2

De entrevistas coletivas o presidente Lula não gosta, quando levam esse nome. Mas foi como entrevista coletiva que funcionou o café da manhã que ele teve ontem com jornalistas: todas as perguntas foram feitas e respondidas, em sinal de sua disposição, ontem reiterada, de ter uma outra relação com a imprensa no segundo mandato. A nota forte da conversa foi o otimismo e a tranqüilidade, a satisfação com os saldos deste ano, que incluem a vitória eleitoral, o desempenho da economia e a elevada aprovação ao governo.

Antes de abordar os variados temas da conjuntura ¿ disparidades salariais entre os poderes, disputa por subsídios fiscais entre cultura e esporte, sucessão nas Mesas do Congresso, formação do novo Ministério e desafios do crescimento ¿ Lula gastou os minutos iniciais do encontro falando da vida que leva como presidente, da solidão a que o cargo obriga. Como presidente, nunca foi a restaurantes nem a teatros, para evitar os transtornos causados pela segurança. Diz ser obediente à segurança porque entende que ela precisa agir com profissionalismo. Não foi a casamentos, aniversários de amigos ou qualquer tipo de festa para não incomodar a casa dos outros com as vistorias prévias. Nos domingos solitários, diz nem poder chamar um ou outro auxiliar para conversar: os não-chamados ficariam enciumados e acabaria tendo problemas.

¿ Quando posso, gasto meu tempo pescando ¿ disse, dando início às suas histórias de pescador. Como em todas elas, não faltou a de um peixe grande, no caso um imenso jaú, com mais de 20 quilos, agora retirado do lago do Alvorada porque estava devorando os patinhos, além dos peixes menores. Virou reprodutor numa reserva ambiental. Lula diz criar carpas, pintados, pacus, tucunarés e até mesmo piraputangas, saboroso peixe do Pantanal, que tem como inconveniente a abundância de espinhos.

Peixes à parte, Lula confirmou o que já está claro: deixou todas as decisões para 2007 e passará o fim do ano apenas desfrutando da popularidade. No dia primeiro de janeiro, disse e repetiu, só ele e José Alencar têm que tomar posse. Logo, não serão conhecidos ministros antes disso, talvez nem mesmo em janeiro. Logo depois do Ano Novo, ele passará dez dias de férias numa dessas casas litorâneas da Marinha. No dia 10 deve ir à Nicarágua para a posse de Daniel Ortega, com uma passadinha em Cuba para uma visita a Fidel Castro.

Ele garante que adiou o anúncio do pacote de incentivo ao crescimento não porque o achou inconsistente: ¿as pessoas estão com a cabeça no Natal, pensando em outro pacote, o de Papai Noel¿. Mas o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, já explicou que agora, tendo o governo comprometido R$1 bilhão com o aumento do salário mínimo para R$380, bancados pelo presidente, será preciso ¿reacomodar os números¿. Esse bilhão de reais certamente fará falta, ou como investimento público ou como desoneração para incentivar o investimento privado. Mas nem por isso o presidente manifesta preocupação com os efeitos da decisão.

¿ Os problemas do país não vão ser resolvidos com o achatamento do salário mínimo. Enquanto eu for presidente, ele vai subir acima da inflação. É isso que tem garantido a distribuição de renda, que tem permitido a combinação do aumento das exportações com a ampliação do mercado interno. O varejo está explodindo. Se vocês entrarem nos mercados, se forem à Rua 25 de março em São Paulo, vão ver como está fervendo.

As simbologias também ajudam a explicar o êxito de Lula. Hoje, por exemplo, pela quarta vez na véspera de Natal, ele toma café com os catadores de papel. Ontem, recordou ter se emocionado muito ao recebê-los, e aos moradores de rua, ¿neste palácio destinado a reis e poderosos¿. Elas ajudam a explicar o êxito, mas não o sustentariam sem a irrigação da economia dos mais pobres pelo salário mínimo maior, o crédito e os programas sociais.

Em determinado momento, voltou-se à questão de ¿ser de esquerda¿ na maturidade.

¿ Se ser de esquerda é pensar como penso a questão social, sou de esquerda. Meu governo não. É plural, é de coalizão, incorpora todas as forças sociais.

Mais uma vez Lula evitou comprometer-se com o crescimento de 5% do PIB no ano que vem (¿4,9% já seriam apontados como derrota¿) e, apesar do aumento do mínimo e de outros gastos, mostrou que é um conservador em política econômica.

¿ Vamos crescer mas com a inflação controlada. Ela não pode voltar. E, com muita responsabilidade fiscal, sem mágicas.

Fica também para 2007 a arbitragem da disputa entre aliados pela presidência da Câmara, outro problema de que Lula vem se afastando. Mas ele fez o importante compromisso de buscar um entendimento entre os Três Poderes e os partidos para que seja fixado o teto salarial único e corrigidas as grandes disparidades salariais que existem no setor público. Se isso não for feito, crises como a desta semana, por conta do aumento que os parlamentares queriam se conceder, vão se repetir.

Outro sinal muito claro foi o de que a equipe econômica toda ficará:

¿ Eles estão trabalhando bem. Ou por que será que estamos colhendo bons resultados econômicos e houve o resultado eleitoral?

Mantega voltou para a frigideira das especulações depois que Lula o atropelou bancando os R$380 para o salário mínimo. Mas isso não quer dizer nada. Lula não está interessado em ministro da Fazenda forte. Nem em qualquer tipo de super-ministro, como o foram Dirceu e Palocci no primeiro mandato. Quando falava de peixes, disse que ia deixar de criar jaú, um peixe muito espaçoso e guloso, que costuma devorar os outros. Perguntamos se tem jaú no governo e ele riu dizendo que não. Os ministros já entenderam isso. Dilma Rousseff, tão logo começou a ser apontada como forte e poderosa, mergulhou na discrição do quarto andar palaciano.

O ano termina mesmo bem para Lula mas em 2007 começa o desafio: se não fizer ¿um governo diferente e muito¿, não haverá simbologia que evite uma grande frustração.