Título: Espanha cada vez mais à esquerda
Autor: Guilayn, Priscila
Fonte: O Globo, 24/12/2006, O Mundo, p. 33

Para cientistas políticos, governo de Zapatero fez guinada histórica no país majoritariamente católico

MADRI. Há alguns meses, ao completar dois anos no poder, o presidente do governo socialista José Luis Zapatero afirmou, em uma entrevista a um jornal espanhol, que a direita espanhola o ensinou que é a esquerda quem faz a democracia avançar: ¿Muita gente sente falta de um partido de centro, mas eu não estarei nele¿, declarou.

Zapatero colocou em marcha medidas que mostravam sua intenção de virar uma página na História de um país marcado por uma Guerra Civil, por 40 anos de ditadura militar, por um processo de transição democrática baseada em acordos de silêncio e, recentemente, por oito anos de administração do conservador Partido Popular. Suas iniciativas de ampliação de direitos sociais situaram a Espanha, segundo especialistas em política, à esquerda de toda sua história, e à esquerda da Europa atual.

¿ Mais do que classificar entre esquerda ou direita, se trata de falar sobre tolerância. A Espanha, que tem sido secularizada, é atualmente uma das sociedades mais tolerantes de toda a Europa. Cerca de 70% dos espanhóis, segundo diversas pesquisas, apoiaram a lei de matrimônio homossexual. Este é um assunto de tremenda repercussão social e veremos, nos próximos anos, que se transformará em pauta a ser tratada pelos demais países europeus ¿ afirma Julián Santamaría, diretor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Complutense de Madri.

Foi justamente a aprovação, em 2005, do casamento homossexual ¿ só permitido na Holanda e na Bélgica ¿ a medida de maior projeção nacional e internacional da agenda de Zapatero. Mas a Espanha foi além da Bélgica e regularizou, ainda, a adoção. Um ano e meio mais tarde, já são mais de 4.500 casamentos e 50 adoções. A medida foi considerada pela Conferência Episcopal Espanhola como ¿prejudicial para o bem comum, pois deturpa a instituição do matrimônio.¿

País nunca esteve tão à esquerda, diz especialista

A Igreja também se opôs à aprovação da lei de reprodução assistida, que permite a seleção embrionária para possibilitar a concepção de um feto geneticamente compatível a um irmão doente, para que possa ser seu doador de células-tronco. Mesmo contrariando uma vez mais a Igreja, o governo deste país majoritariamente católico afirmou conservar relações ¿fluidas e cordiais¿ com a Santa Sé.

¿ É um mito dizer que a Espanha é um país católico. Apenas 20% vão à Igreja e 85% se consideram católicos porque foram batizados, mas a prática religiosa é muito escassa, e a influência social da Igreja é reduzida ¿ explica Santamaría ¿ Esta perda de autoridade moral faz com que a Igreja, financiada por fundos públicos, reivindique um certo poder político, controlando algumas áreas da educação.

A recém-aprovada reforma educativa estabelece que os salários dos professores de religião sejam pagos pelo Estado, mas dá à Igreja o poder de desmit-los. Além disso, depois de outro acordo entre o Executivo e a Conferência Episcopal, foi decidido que o imposto de renda de pessoa física destinado voluntariamente pelo contribuinte à Igreja subirá de 0,52 a 0,70%. Em 2002, com a cota antiga, a Igreja arrecadou, 105 milhões de euros.

¿ O governo dá à Igreja praticamente tudo. Este era o momento para avançar a um Estado não confessional ¿ afirmou, recentemente, Gazpar Llamazares, líder do partido Esquerda Unida, que considera que o Governo socialista, com ambas iniciativas, está dando um giro à direita e à inércia.

Com todos as particularidades desta gestão socialista, o cientista político Carlos Taibo, da Universidade Autônoma de Madri, reconhece que a Espanha nunca esteve tão à esquerda. Ressalta, no entanto, que as comparações não são muito apropriadas, tendo em conta as grandes diferenças conjunturais: o também socialista Felipe González, que governou entre 1982 e 1996, tinha uma margem de manobra bem inferior por ser o presidente da transição; enquanto Zapatero administra uma sociedade democraticamente estabilizada.

¿ Mesmo com uma margem de manobra maior, Zapatero não a aproveitou completamente ¿ critica Taibo.

A chamada lei de Memória Histórica, que, em palavras do governo, ¿reconhece e amplia os direitos de quem padeceu perseguição ou violência durante a Guerra Civil ou a ditadura¿ em vez de cicatrizar feridas, vem criando polêmica. Não agrada a gregos nem a troianos: irrita a oposição e não satisfaz os que deveriam se beneficiar dela.

¿ Há setores do Partido Socialista que estavam inclinados a revisar os acordos de silêncio que marcaram a transição. Mas, embora haja avanços em relação ao que tínhamos antes, a lei é muito vaga, de caráter retórico e sem conseqüências práticas ¿ opina Taibo.