Título: Pronto para morrer como mártir
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Fonte: O Globo, 28/12/2006, O Mundo, p. 26

Em carta, Saddam Hussein se despede do povo iraquiano e pede união contra invasores

BAGDÁ

Depois de perder todas as chances legais de se livrar da execução ¿ o que deve ocorrer num prazo de 30 dias, contado a partir de ontem ¿ o ex-ditador do Iraque, Saddam Hussein, se disse ¿pronto para morrer como um mártir¿. Em uma carta escrita por ele da prisão, publicada ontem num site da Jordânia e que foi autenticada por seus advogados, Saddam disse adeus ao povo e afirmou estar pronto para fazer este sacrifício (ele será enforcado) em nome dos iraquianos, a quem pede união para lutar contra seus inimigos, os ¿invasores estrangeiros¿ (EUA).

Saddam foi condenado à morte por um tribunal em Bagdá, em 5 de novembro. Na terça-feira, a Corte de Apelações do Iraque rejeitou um pedido contra a sentença dada a Saddam, que agora tornou-se irrevogável, e foi estabelecido o prazo de um mês para ela ser aplicada, o que deve ocorrer em data e local secretos, numa tentativa de evitar levantes populares. O único jeito de evitar a morte é se a família de Saddam pedir clemência ao presidente do Iraque, Jalal Talabani. É improvável que o pedido aconteça, e também que Talabani impeça o enforcamento do ex-ditador ¿ apesar de o presidente do Iraque já ter se declarado pessoalmente contrário à pena de morte.

Na carta, que teria sido escrita por Saddam no dia de sua condenação em novembro, mas foi tornada pública somente ontem, o ex-ditador disse esperar que ¿Deus o recompense pelo sacrifício¿ que fez em nome do Iraque, colocando-o no ¿posto de mártir¿. A mensagem acusa ainda EUA e Irã de estarem por trás da violência e do derramamento de sangue no país.

¿Os inimigos de nosso país, os invasores e os persas encontraram aqui a união de vocês como barreira. Por isso, jogam todo o ódio deles em cima de vocês. Continuem se unindo e lutando contra eles, não os deixem dividir vocês¿, disse Saddam na mensagem, pedindo ainda ¿vida longa à jihad (guerra santa) e aos mujaheddin (guerreiros islâmicos) contra os invasores¿. O ex-ditador do Iraque, no entanto, disse na carta que os iraquianos não devem culpar a população dos EUA nem a de seus aliados. ¿Eu peço que vocês iraquianos não odeiem o povo dos países que cometeram esta agressão contra nós. É preciso diferenciar o povo, as pessoas comuns, das que tomam as decisões¿, escreveu Saddam.

O tom condiz com o adotado pelo ex-ditador durante todo o seu julgamento. Sunita de 69 anos, Saddam declarou-se inocente no massacre de 148 xiitas no vilarejo de Dujail, em 1982 ¿ pelo qual foi condenado à morte. Saddam é julgado ainda por acusações relacionadas a uma operação militar contra os curdos no fim dos anos 1980 ¿ a chamada operação Anfal ¿ na qual mais de 180 mil pessoas teriam morrido. Se não for executado antes, ele deverá comparecer a este tribunal na primeira semana de janeiro. Pela lei iraquiana, o ex-ditador pode ser enforcado independentemente do resultado do segundo julgamento.

A expectativa agora é de quando a execução ocorrerá. Como o governo se mantém em silêncio sobre o tema, especula-se que o enforcamento ocorra já nos próximos dias, em um local secreto, e que mídia nem população tenham acesso ¿ apesar de xiitas mais radicais terem solicitado que Saddam fosse enforcado em praça pública. O cientista político iraquiano Hazim al-Naimi, por exemplo, acha que a morte de Saddam só será anunciada dias depois da execução já ter acontecido.

Nas ruas, temor de que violência cresça

Nas ruas de Bagdá, cresce o temor de que a morte do ex-ditador piore ainda mais a violência no país. O partido de Saddam, o Baath, exortou iraquianos a atacarem alvos americanos e de seus aliados caso Saddam seja executado. ¿Nós alertamos contra as conseqüências que este veredicto pode trazer para o Iraque e particularmente para os EUA¿, declarou um comunicado do grupo, divulgado também ontem, desta vez num site do Iêmen. O Baath afirmou que os americanos cruzarão um ¿perigosa linha¿ caso Saddam seja enforcado.

Apesar de contrário à pena de morte, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, declarou ¿que o julgamento lembrou como o regime de Saddam era brutal¿. O premier lembrou que, apesar de a Grã-Bretanha não aplicar a pena de morte, a lei do Iraque a permite. Já a Casa Branca disse que o veredicto é um marco nos esforços do Iraque para ¿substituir o poder de um tirano pelo poder da lei¿. Grupos de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, voltaram a questionar a legitimidade do julgamento, afirmando que ele foi politizado. As organizações pediram que a pena de morte fosse suspensa.