Título: Morre Gerald Ford, um presidente por acaso
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Fonte: O Globo, 28/12/2006, O Mundo, p. 27

Ex-governante que uniu o país após o escândalo de Watergate será mais lembrado pelo polêmico perdão a Nixon

WASHINGTON. Ele foi um presidente improvável. Nunca concorreu ao cargo máximo do governo americano e tampouco dividiu a chapa que levou Richard Nixon ao poder. Mas ao morrer ontem, aos 93 anos, Gerald Ford foi lembrado com simpatia, como um homem prático, que tentou unir um país dividido, e por uma decisão polêmica: conceder o perdão a seu antecessor em meio ao escândalo do Watergate.

Ford ¿morreu em paz¿, às 18h45m de ontem, em sua casa, no Rancho Mirage, na Califórnia, informou a família, que não disse a causa da morte. ¿Sua vida foi plena do amor de Deus, de sua família e de seu país¿, disse a viúva, Betty, num comunicado. Com a morte de Ronald Reagan, em 2004, Ford passara a ser o mais idoso ex-presidente dos EUA vivo.

Indicação do Congresso

O republicano Ford se tornou o 38º presidente dos EUA em 9 de agosto de 1974, depois da renúncia de Nixon. Tornou-se, assim, o único presidente não-eleito do país. Ex-congressista, Ford assumiu o cargo em tempos difíceis e prometeu:

¿ Nosso longo pesadelo nacional terminou.

Nixon o nomeara vice-presidente um ano antes, em substituição a Spiro Agnew, que deixara o cargo para evitar um processo de corrupção. Na época, o presidente havia reduzido os candidatos ao cargo a quatro homens, entre eles Ronald Reagan e Nelson Rockfeller.

Na tarde da renúncia de Agnew, Nixon convocou dois líderes do Congresso, então controlado pelos democratas, em busca de conselho: o presidente da Câmara de Representantes, Carl Albert, e o líder da maioria no Senado, Mike Mansfield. ¿Albert sugeriu Jerry Ford¿, escreveu James Cannon, biógrafo de Ford no livro ¿Character above all¿ (¿Caráter acima de tudo¿). Albert disse a Nixon que o líder dos republicanos na Câmara seria rapidamente confirmado pela maioria democrata.

¿ Nós não demos a Nixon outra escolha senão Ford ¿ disse Albert, anos mais tarde.

Bush: ajuda para sarar divisões

Um mês após assumir a Presidência, Ford chocou os americanos ao conceder a Nixon ¿um perdão completo, livre e absoluto¿ por qualquer crime que pudesse ter cometido no governo ¿ fato ao qual muitos historiadores atribuem sua derrota na eleição de 1976 para o democrata Jimmy Carter. Com os anos, no entanto, muitos passaram a acreditar que foi a decisão correta para o momento.

Ford governou por 896 dias. Quando deixou o poder, os americanos nutriam sentimentos contraditórios a seu respeito. Mas, em sua morte, eles responderam com respeito e afeição.

¿ Foi um grande americano. O presidente Ford ajudou a curar nossa terra e restaurar a confiança do público na Presidência ¿ declarou o presidente George W. Bush, que determinou que as bandeiras fiquem a meio mastro por 30 dias, em sinal de luto.

Carter destacou a amizade com o antigo adversário.

¿ Ele freqüentemente esteve acima da política ao enfatizar a necessidade do bipartidarismo e buscar terreno comum em questões críticas para a nação ¿ disse.

Problemas perseguiram Ford durante os dois anos de governo. A inflação crescia em meio à maior crise econômica desde a Grande Depressão. Em menos de três semanas, durante a campanha eleitoral, Ford escapou de dois atentados. Depois, o presidente declarou que não se tornaria refém da Casa Branca.

¿ Não me deixarei assustar por anarquistas e assassinos.

Os EUA viviam ainda o pesadelo da Indochina e o governo comunista do Camboja prendeu o cargueiro americano Mayaguez. Neste episódio, Ford teve o desempenho elogiado: numa ação fulminante, fuzileiros navais resgataram o barco e os 45 tripulantes. Foi Ford também quem declarou que a Guerra do Vietnã estava ¿encerrada no que diz respeito aos EUA¿, em 1975. No encontro de Helsinque, no mesmo ano, assinou com Leonid Brejnev acordos em que o Ocidente reconhecia o domínio soviético na Europa Oriental, enquanto Moscou prometia aliviar restrições de fronteira.

Ford também enfrentou constantes disputas com o Congresso, e seu jeito atrapalhado o tornou motivo de piadas. Não faltaram tropeços, literais ou não. Num jantar com o presidente do Egito, Anwar Sadat, ele propôs um brinde ¿ao grande povo de Israel¿. Num debate com Carter, disse que não havia domínio soviético na Europa Oriental.

Após perder as eleições para Carter, Ford afirmou:

¿ O maior feito de meu governo é o fato de que encontramos o país atormentado e dividido e, agora, acho que unimos o povo.

Ford abandonou a carreira política, mas integrou vários grupos empresariais e viajou pelos EUA em conferências.

Gerald Rudolph Ford nasceu em Omaha, Nebraska, em 14 de julho de 1913. Chamava-se Leslie King, mas seus pais se divorciaram logo depois e mais tarde ele ganharia o nome do padrasto. Passou a maior parte de sua juventude em Grand Rapids, Michigan. Aos 16 anos, já tinha 1,80m de altura e pesava 90 quilos. Aos 18, era um atleta de destaque na Universidade de Michigan. Seu esporte, futebol americano.

Na Segunda Guerra Mundial, passou 47 meses no Pacífico, como oficial de navegação num porta-aviões. Em 1948, casou-se com Betty Bloomer, ex-participante de concursos de beleza e ex-bailarina que mais tarde se engajaria em cruzadas contra o alcoolismo e o câncer. Em 1949, com ajuda de um amigo, o senador Arthur Vandenberg, elegeu-se deputado por Michigan, sendo reeleito 12 vezes seguidas.

Foi um vice-presidente dos mais ativos. Visitou 40 estados e fez 200 discursos em menos de um ano. Quando a Casa Branca insinuou que Nixon não estava gostando de tanto empenho, ele reagiu:

¿ Não quero ser um inútil. Eu não resistiria.

Com a queda de Nixon, Ford, aos 61 anos, tornou-se o homem mais poderoso do mundo. Mas não se livrou da imagem de político pouco carismático. Depois de se aposentar, sua popularidade e sua integridade o tornaram uma figura mais querida e respeitada nos círculos políticos.

Nos últimos anos, a saúde se deteriorou. Em janeiro deste ano teve pneumonia e em agosto se submeteu a uma angioplastia e recebeu um marcapasso. Em dezembro, foi internado para exames de rotina, de acordo com seu escritório.

Além da viúva, Betty, de 88 anos, Ford deixa os filhos Michael, Jack, Steven e Susan. Os detalhes do funeral ainda estão sendo fechados, mas o Capitólio, em Washington, estava sendo preparado para o velório. Ford deverá ser enterrado em Grand Rapids, Michigan.