Título: Cortes islâmicas vetaram futebol e cinema
Autor:
Fonte: O Globo, 29/12/2006, O Mundo, p. 31

A ocupação da capital pela UCI, no entanto, levou mais segurança à população

MOGADÍSCIO. A Somália é um Estado falido: um lugar com fronteiras internacionais reconhecidas, onde não existe um governo reconhecível. E é assim há mais de 15 anos, desde que os senhores da guerra derrubaram o ditador Siad Barre. Um país à deriva é a porta de entrada perfeita para as grandes redes terroristas do mundo, como a comunidade internacional rapidamente aprendeu depois da irrupção do Afeganistão dos talibãs.

A União das Cortes Islâmicas é uma coalizão de pequenos tribunais de justiça locais que aplicam com rigor a sharia (a lei islâmica). Eles surgiram no sul da Somália, financiados por comerciantes fartos da insegurança e do pagamento de pedágios a facções armadas. As medidas extremas de seus juízes - como cortar a mão dos ladrões ou daqueles que não cumprem contratos - serviram para botar alguma ordem nas regiões sob seu controle.

Esses tribunais islâmicos locais, já coligados numa união nacional, formaram uma milícia que se nutriu de jovens dedicados a combater sob o comando de quem lhes dê comida. Composta por um exército desses jovens, a união das cortes expulsou, em junho, os chamados senhores da guerra laicos (apoiados pelos EUA) e tomou o controle de Mogadíscio, a capital da Somália, do governo provisório.

De caráter laico, o governo é uma soma de todas as facções políticas e guerreiras dos 15 anos de anarquia (à exceção dos islâmicos, que são posteriores). Trata-se da primeira tentativa séria de reconstruir o Estado somali. O governo provisório nasceu há dois anos, sobre os remanescentes de um plano de paz de 2000. Tem o reconhecimento da ONU e da comunidade internacional. Agora, conta também com o apoio militar da Etiópia, que teme a vizinhança de uma Somália radicalizada.

A Casa Branca sustenta que a UCI mantém vínculos com a al-Qaeda, mas seus dirigentes negam. Europeus afirmam que a organização abriga duas tendências, uma moderada e outra extremista. Alguns analistas acreditam que a demonização do grupo por Washington foi um erro pois lançou os extremistas de todo o mundo em sua direção.

Uma das primeiras medidas da UCI depois de tomar Mogadíscio, em junho, foi proibir a população de assistir aos jogos da Copa do Mundo da Alemanha. Os islâmicos fecharam cinemas (algumas vezes a tiros), proibiram a exibição de filmes estrangeiros e recomendaram as emissoras de rádio que não toquem músicas de outros países. Também foram retomadas as execuções públicas, com a participação de menores de idade.

Apesar de tudo, os islâmicos têm apoio da população, que valoriza o aumento da segurança. Os preços dos artigos de primeira necessidade diminuiram consideravelmente com o fim dos pedágios dos senhores da guerra. O lixo começou a ser recolhido de várias ruas da capital, um símbolo do surgimento de algum tipo de autoridade central.

Ocupação de Mogadíscio seria um problema

Numa guerra em que os bandos locais carecem de aviação e artilharia pesada, a entrada das tropas etíopes já apontava uma vitória certa para Adis Abeba. O problema para a Etiópia é o dia seguinte. Se seu Exército derrota os islâmicos, será obrigado a uma longa ocupação de apoio a um governo local sem força e sem muito apoio interno.

Os islâmicos, por sua vez, resgataram canções patrióticas da guerra de 1977 contra a Etiópia e as tocam sem parar. Trata-se de sua segunda grande arma: despertar o nacionalismo.