Título: A queda de Mogadíscio
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Fonte: O Globo, 29/12/2006, O Mundo, p. 31

Islâmicos são expulsos da capital da Somália com apoio da Etiópia, em batalha que matou milhares

Seis meses depois de tomarem a capital e outras regiões da Somália - e ameaçarem criar no país africano um estado de rígidas leis islâmicas nos moldes do que o Talibã fez no Afeganistão - radicais da União das Cortes Islâmicas (UCI) foram expulsos, ontem, de Mogadíscio por tropas do frágil governo da Somália, que contaram com a poderosa ajuda da Etiópia. Os confrontos dos últimos dez dias no país, considerado um dos mais instáveis e violentos do mundo, deixaram um saldo de entre dois e três mil mortos, a maioria guerrilheiros islâmicos, segundo o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi, ao anunciar que a capital somali havia sido controlada. O premier da Somália, Ali Mohamed Gedi, já está em Mogadíscio e declarou que, a partir de hoje, a Somália estará sob lei marcial pelos próximos três meses.

Segundo a ONU, que havia aprovado o envio de tropas internacionais ao país para impedirem a ameaça das milícias - algo que acabou não sendo concretizado com a decisão etíope de invadir a Somália - os confrontos produziram milhares de refugiados. Centenas deixaram ontem o país de barco. Duas embarcações chegaram a afundar na costa do Iêmen, matando cerca de 20 pessoas e deixando centenas de desaparecidos. A ONU, no entanto, assim como os EUA, aprovaram a ação militar da Etiópia - a grande força militar da região conhecida como Chifre da África, no nordeste do continente.

Em Mogadíscio, integrantes da União das Cortes Islâmicas admitiram a derrota.

- Fomos vencidos. A maioria dos nossos líderes fugiu, ou deixou para trás suas armas e uniformes - disse um lutador da UCI.

UCI diz que cidade mergulhou no caos

Em entrevista à rede de TV árabe al-Jazeera, o xeque Sharif Ahmed, líder das cortes, também admitiu a derrota, e disse que "o caos se instalou em Mogadíscio". O xeque acelerou o confronto até então iminente entre os radicais e o governo quando, dez dias atrás, declarou "guerra santa à Etiópia". Desde que tomaram a capital, os islâmicos restringiram a presença do frágil governo somali - único reconhecido pelo comunidade internacional - à cidade de Baidoa, no centro-sul e arredores. Ali, tropas da Etiópia permaneciam em alerta.

Agora, com a aparente neutralização das milícias islâmicas, a expectativa é se a Somália - que está sem um governo central desde 1991 quando o ditador Mohamed Siad Barre foi derrubado - conseguirá ter alguma estabilidade. Esta é a 14ª vez que tenta-se instalar um governo central no país. Para muitos, o controle de Mogadíscio adquirido ontem representa um grande passo. O porta-voz do governo da Somália, Abdirahman Dinari, afirmou que 95% do país já estão sob controle do governo.

Mas há o temor de que os islâmicos voltem a se agrupar, já que contam com apoio da Eritréia, outro país do Chifre da África, inimigo da Etiópia. Segundo os EUA, a UCI abriga ainda, como ocorria com o Talibã no Afeganistão, integrantes da rede terrorista al-Qaeda. Além das cortes, há a ameaça dos senhores da guerra que, em grupos armados e poderosos localmente, aterrorizavam a Somália antes da UCI tomar o controle de boa parte do país. Muitos dos integrantes desses grupos passaram a fazer parte das cortes.

- Os senhores da guerra brigavam por tudo, desde gado até mulheres - disse esta semana ao GLOBO o médico brasileiro Otávio Omati, da equipe da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), cujos integrantes deixaram a Somália há três dias, com o agravamento da violência.

Segundo analistas, apesar da intenção de imprimir a sharia (lei islâmica) na Somália, a UCI trazia uma relativa estabilidade porque conteve as disputas entre os senhores de guerra.

A Cruz Vermelha Internacional disse ontem estar preocupada com a segurança no país. Há relatos de saques e destruição em Mogadíscio e outras regiões. O governo espera que a lei marcial contenha a violência.