Título: O contra-ataque das milícias
Autor: Ramalho, Sérgio e Araújo, vera
Fonte: O Globo, 30/12/2006, Rio, p. 11

Segundo relatório, grupos que controlam favelas estão dispostos a revidar atentados

Um relatório da Subsecretaria de Inteligência (SSI) revela a disposição de integrantes de milícias - formadas por policiais, bombeiros e agentes penitenciários - de retaliar os ataques de traficantes ocorridos na madrugada e na manhã de quinta-feira no Rio. Segundo as informações analisadas, há também a possibilidade de confrontos entre milicianos e bandidos nas favelas Roquete Pinto, Praia de Ramos e Kelson's. As comunidades foram tomadas pelas milícias em novembro, de uma das facções responsáveis pelos atentados.

A série de ataques, que resultou na morte de 18 pessoas, foi desencadeada por traficantes de duas facções, em resposta à expansão dos grupos de milicianos, que dominam atualmente 92 favelas. Apesar de o secretário de Segurança, Roberto Precioso, atribuir a onda de terror a mudanças na Secretaria de Administração Penitenciária, informações da SSI reforçam a primeira versão.

Os ataques mais brutais aconteceram nas imediações da Cidade Alta, em Cordovil, e da Cidade de Deus, em Jacarepaguá. As duas favelas estariam entre os futuros alvos dos milicianos, segundo a SSI. Traficantes das duas comunidades são acusados de participação nos ataques a um ônibus da Viação Itapemirim, em que sete passageiros morreram queimados, e a uma cabine da PM na Barra da Tijuca, onde um soldado foi assassinado.

Relatórios da SSI e do Gabinete Militar da prefeitura do Rio mostram que as duas facções envolvidas nos atentados perderam terreno para os milicianos. Das 92 favelas invadidas pelos milicianos nos últimos 20 meses, 42 eram dominadas pela facção que controla a venda de drogas na Mangueira e na Cidade Deus, onde foram planejados os atentados. A perda de território uniu o bando à facção rival, que perdeu 25 favelas, entre elas a Boogie Woogie e a Praia da Rosa, na Ilha do Governador.

Ataques planejados na Cidade de Deus

Em liberdade desde outubro de 2004, Gilberto Martins da Silva, o Mineiro da Cidade Alta, de 45 anos, é apontado pela polícia como um dos suspeito de planejar os ataques. Segundo a chefe do setor de inteligência da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), a deputada federal eleita Marina Maggessi, há informações de que Mineiro teria ordenado a seus cúmplices que incendiassem o ônibus da Itapemirim, na Avenida Brasil, em frente à Cidade Alta.

Ele ficou preso em Bangu III sob a acusação de homicídio e formação de quadrilha, mas conseguiu ser absolvido no II Tribunal do Júri. Mineiro já foi acusado também de chefiar o tráfico em seis favelas de Cordovil. A polícia o aponta ainda como o bandido que autorizou a filmagem de trechos de "Cidade de Deus" na Cidade Alta. A DRE chegou a ouvir a produção e o diretor Fernando Meirelles, depois que ele, em entrevista ao site Globonews.com, afirmou ter negociado com Mineiro a autorização para as filmagens na favela.

O advogado Francisco Santana, que defende Mineiro, diz que seu cliente nem estava no Rio durante os ataques. Francisco desafiou Marina a provar que o acusado teve participação no incêndio do ônibus ou mesmo que continue atuando no tráfico.

Mas foi o traficante Jorge Ferreira, o Gim ou Kim, chefe da venda de drogas na Quadra 15 da Cidade de Deus, o mentor intelectual dos atentados, de acordo com o Núcleo de Inteligência do Sistema Penitenciário (Nispen) e com setores de inteligência da DRE e da Polícia Militar. A PM, inclusive, enviou um relatório reservado à SSI, informando sobre uma reunião, no Natal, convocada por Gim, no Morro da Mangueira, para planejar os ataques. O sinal verde para o encontro foi dado pelo traficante Jonas da Silva Sales, o Joaninha, que seria sobrinho de Francisco Paulo Monteiro, o Tuchinha, ex-chefe do tráfico da Mangueira, em liberdade desde junho, depois de cumprir 17 anos de prisão.

Segundo Marina, Gim convenceu traficantes da Mangueira, da Vila Kennedy e da Cidade Alta a apoiarem os ataques. Ainda de acordo com a policial, a invasão da Cidade de Deus - único reduto da área de Jacarepaguá ainda nas mãos do tráfico - por milícias estava marcada, possivelmente, para a passagem do ano. Segundo Marina, aderiram ao plano traficantes das favelas da Providência, do Pavão-Pavãozinho, do Cantagalo, do Complexo do Alemão, da Chatuba, de Mesquita e Reta Velha, em Itaboraí.

Escutas mostram união de facções

Interceptações telefônicas do serviço de inteligência de um dos órgãos de segurança do estado confirmam a união de forças de duas facções criminosas - que detêm, juntas, o controle de 65% das favelas do estado - contra os milicianos. O próprio secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos, confirmou, anteontem, a integração dos dois grupos. Segundo analistas de informação do Núcleo de Inteligência do Sistema Penitenciário ( Nispen), a terceira quadrilha só não se uniu às demais porque seus integrantes negociaram com os milicianos.

- A terceira facção (chefiada pelo traficante Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém, preso em Bangu I) não se juntou ao resto do pessoal porque fez a seguinte negociação: "nós ficamos com o tráfico, enquanto vocês exploram o transporte alternativo, o gás e a gatonet (rede ilegal de TV a cabo) - explicou o analista.

Segundo um outro especialista na área de inteligência, o grupo do traficante Celsinho costuma pagar altas quantias a policiais para cuidar da segurança de suas favelas.

Na manhã de ontem, conforme O GLOBO anunciou, Astério determinou que seis traficantes suspeitos de envolvimento nos ataques fossem postos no regime disciplinar diferenciado (RDD). São eles Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP; Isaías Costa Rodrigues, o Isaías do Borel; Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco; Edmilson Ferreira dos Santos, o Sassá; Marcio Cândido da Silva, o Porca Ruça; e Robson André da Silva, o Robinho Pinga. Este último controlaria as favelas Roquete Pinto e Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré, recentemente tomadas pelas milícias.

A chefe do setor de inteligência da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), Marina Maggessi, não acredita em união de forças:

- Eu não acredito nisso. Sei que tem preso de duas facções em RDD, mas acho que pode estar ocorrendo alguma injustiça - disse Maggessi, referindo-se ao traficante Robinho Pinga, que é de uma facção diferente da dos demais bandidos no regime especial.