Título: Contrariado com pressões por mais gasto publico, Kawall deixa o Tesouro
Autor: Beck, Martha e Barbosa, Flávia
Fonte: O Globo, 30/12/2006, Economia, p. 26

Pacote de medidas pró-crescimento foi gota d'água para saída de secretário

BRASÍLIA. O secretário do Tesouro Nacional, Carlos Kawall, pediu ontem exoneração do cargo. Em carta ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou ter tomado a decisão por razões estritamente pessoais. Nos bastidores do governo, entretanto, o desconforto de Kawall com o rumo das contas públicas no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é visto como um dos principais fatores que influenciaram sua saída. Ele será substituído interinamente pelo atual secretário-adjunto do Tesouro, Tarcísio Godoy.

Há cerca de duas semanas, o secretário reuniu seus principais assessores para comunicar, em caráter reservado, que estava deixando o governo. Mas, na ocasião, alegou razões estritamente pessoais e familiares.

Assessores do Ministério da Fazenda que conviveram com Kawall consideram que ele nunca esteve muito confortável no papel de xerife do cofre da União. Pelas pressões internas e externas para elevar os gastos públicos, pela falta de uma liderança mais forte do ministro Guido Mantega, que servisse de escudo a essas pressões, e pelas dificuldades políticas para implementar uma política fiscal de acordo com suas convicções.

Kawall defendia reforma da Previdência, rejeitada por Lula

O ponto alto desse descontentamento teria ocorrido nas discussões do pacote para estimular o crescimento do país no segundo mandato. As medidas envolvem uma série de desonerações tributárias, mas são tímidas do ponto de vista fiscal, segundo avaliações internas de integrantes do governo. Uma nova reforma da Previdência, por exemplo, defendida pelo secretário-executivo da Fazenda, Bernard Appy, e pelo próprio Kawall, foi descartada pelo presidente Lula.

Embora seja flexível, com forte influência da escola desenvolvimentista, Kawall, que já foi economista-chefe do Citibank, tem grande apreço pelo rigor fiscal. Para ele, estava claro, segundo um amigo e integrante do governo, que essa questão deveria ser central nas discussões de política econômica no segundo mandato. A crise de identidade se acentuou após o decreto do "fim da era Palocci" pelo ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, que marcou o início das discussões do pacote.

Em seus nove meses à frente do Tesouro, Kawall foi cauteloso ao falar, por exemplo, sobre a possibilidade de o governo descontar os gastos com o Projeto-Piloto de Investimentos (PPI) da meta de superávit primário - instrumento que existe desde 2004, mas que nunca foi utilizado na prática. Quando ficou claro que o governo Lula encampou a idéia, admitindo reduzir a economia para pagamento de juros de 4,25% para até 3,75% do Produto Interno Bruto (PIB), o incômodo cresceu.

O descompasso ficou evidente na última audiência pública de que Kawall participou no Congresso. Diante dos parlamentares, ele defendeu categoricamente a manutenção do superávit de 4,25% em 2007, sem espaço para aumento dos investimentos do PPI. Meia hora depois, Mantega deu entrevista afirmando que estavam sendo estudadas tanto a ampliação do PPI quanto a possível exclusão deste da meta de 2007.

Na carta de despedida, apoio às medidas econômicas

Porém, mantendo sua discrição característica, Kawall fez questão de ressaltar, na carta de despedida, que não houve qualquer distanciamento em relação ao ministro da Fazenda.

"É sempre possível que minha saída seja interpretada como se houvesse, entre eu (sic) e você (Mantega), ou entre eu (sic) e o governo, um distanciamento. Sabemos que esta interpretação é infundada e inverídica, somente podendo prosperar na mente dos que (ainda que legitimamente) fazem oposição ao governo, ou daqueles que implicitamente acreditam que quem está em um cargo público não tem vida pessoal", afirma na carta. "Saio com otimismo quanto ao futuro do país, que tem todas as condições de ingressar em um ciclo de crescimento sustentado com estabilidade econômica. É este o sentido das medidas econômicas que o governo ora discute".

Xadrez dos cargos na área econômica

Ligado a Mantega, Fiocca está cotado. BNDES é alvo de disputa

BRASÍLIA. Com a saída de Carlos Kawall do Tesouro, o atual presidente do BNDES, Demian Fiocca, ligado ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, lidera a bolsa de apostas para substituí-lo. Fiocca poderia deixar o cargo atual para que o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, indique um nome da sua confiança para comandar o banco. A troca daria início à dança de cadeiras na área econômica, embora não sejam esperadas grandes mudanças na equipe de Mantega.

O secretário-executivo Bernard Appy - que no auge das discussões do pacote econômico deixou claro a interlocutores o seu descontentamento com os rumos da política econômica - deve permanecer no governo. Ele mesmo declarou que fica na semana passada, em jantar oferecido a sua equipe. A avaliação interna do governo é que Appy é um quadro importante, petista histórico, de confiança, e preparado tecnicamente. Mesmo divergindo de Mantega e do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva na condução da política fiscal, deve ser mantido no Ministério da Fazenda no segundo mandato.

Já a ida de Fiocca para o Tesouro enfrenta resistências na Fazenda. Há preocupação com o possível impacto de sua indicação no mercado financeiro e dúvidas sobre a força política do atual presidente do BNDES para enfrentar as pressões inerentes ao cargo de xerife do cofre federal. Técnicos ressaltam que o sucessor precisa ser escolhido com cautela e, nesse sentido, a nomeação do adjunto Tarcísio Godoy como interino teria sido acertada.

- Godoy está no Tesouro há muitos anos e sabe controlar o cofre muito bem - disse um técnico. - Não é preciso trazer algum nome do mercado para o Tesouro. Uma solução interna também seria muito positiva.

A saída de Fiocca do BNDES pode, também, abrir espaço para outros candidatos, frustrando os planos de Furlan, que jamais teve o banco sob sua jurisdição. Já está em curso no governo um movimento liderado pela economista Maria da Conceição Tavares, outra petista histórica, para que o presidente Lula indique para o cargo o economista Luciano Coutinho, afinado com a ala desenvolvimentista. (Regina Alvarez e Martha Beck)