Título: Como Dantes no Quartel de Abrantes
Autor: Gois, Chico de
Fonte: O Globo, 31/12/2006, O País, p. 5

Para analistas, motes do discurso de 2003 foram abandonados no poder

Mudança. A palavra que abriu o discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso, em 2003, seria repetida sete vezes na solenidade em que o ex-metalúrgico assumiu o posto de um sociólogo no comando da República. Quatro anos depois, a promessa de abandonar os rumos traçados por Fernando Henrique Cardoso revelou-se pura retórica, avalia o cientista político Luiz Werneck Vianna, do Iuperj. Para o analista, Lula trocou o desafio da ruptura pela segurança da continuidade.

- Só houve mudança na ênfase ao combate à pobreza. No mais, ficamos como dantes no Quartel de Abrantes. A política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso foi integralmente preservada - sentencia Werneck.

Descrito por Lula como "instrumento fundamental desse pacto pela mudança", o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social também seria esquecido nos quatro anos seguintes, diz o cientista político.

- O Conselho foi uma ótima idéia esvaziada durante o mandato. Criado para colher novos caminhos da sociedade organizada, tornou-se uma instituição de carimbo das políticas do governo - avalia.

No centro das atenções de um país mobilizado pela festa da posse, Lula disse acreditar num "futuro grandioso", mas cobrou o exercício de duas virtudes: a paciência e a perseverança. Coordenador de um estudo sobre o discurso do presidente, o professor de comunicação da Universidade de Brasília (UnB) Sérgio Porto classifica a retórica do petista como "messiânica":

- Consciente das dificuldades que enfrentaria no poder, Lula conclamou o povo para o sacrifício em nome de uma recompensa futura. Foi o que fez Moisés ao conduzir os hebreus na travessia do deserto.

Depois de dizer que o fim da fome seria "uma causa nacional" durante o primeiro mandato, Lula apresentou o Fome Zero como principal instrumento de sua política social. Para o economista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas, o projeto seria trocado pelo Bolsa Família por problemas de concepção.

- Havia uma certa ingenuidade no Fome Zero. As pessoas não querem só comida, e o governo felizmente conseguiu perceber isso a tempo - diz Néri, que agora sonha com o que chama de "versão 2.0" do programa, com mais exigências na área de educação.

Frei Betto lamenta destino do Fome Zero

A substituição do projeto - que continua a existir formalmente, mas na prática tornou-se um selo no cartão do Bolsa Família - desagradou a um dos seus idealizadores, Frei Betto.

- Infelizmente, o Fome Zero se reduziu a um dos seus inúmeros programas, o Bolsa Família, sem apontar a porta de saída para que os beneficiários fiquem independentes do governo - avalia.

'Não tem na face da Terra nenhum homem mais otimista do que estou hoje. E posso afirmar que não sou resultado de uma eleição. Sou resultado de uma história. Estou realizando o sonho de gerações que, antes de mim, tentaram e não conseguiram. Meu papel é dizer com humildade e serenidade que vou fazer o que é preciso que seja feito nestes quatro anos'

'Amanhã, estaremos começando a primeira campanha contra a fome neste país. É o primeiro dia de combate à fome. Tenho fé em Deus que a gente vai garantir que todo brasileiro e brasileira possam todo santo dia tomar café, almoçar e jantar, porque isso não está escrito no meu programa, está escrito na Constituição brasileira, está escrito na Bíblia e está escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos.'

LULA no discurso de improviso ao tomar posse, em 2003