Título: Promessa de vingança
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Fonte: O Globo, 01/01/2007, O Mundo, p. 27

Corpo de Saddam Hussein é enterrado em sua cidade natal diante de indignados sunitas

AWJA, Iraque

Numa cerimônia em que tristeza e revolta se misturaram, o corpo de Saddam Hussein foi enterrado ontem em seu vilarejo natal, Awja, na madrugada de ontem, um dia depois de ter sido enforcado pelo governo iraquiano. Centenas de árabes sunitas, a maioria integrantes do clã do ex-ditador, Albu Nasir, participaram da cerimônia fúnebre, que respeitou a tradição islâmica.

Até a noite de sábado, o governo ainda não decidira o que fazer com o corpo do ex-ditador e analisava a possibilidade de enterrá-lo num local secreto. Mas decidiu entregar o corpo ao chefe de seu clã, o xeque Ali al-Nida, e ao governador da província de Saladino (onde fica Awja), Hamed al-Chakti. Ele não foi enterrado no cemitério da cidade onde estão os túmulos de seus dois filhos ¿ Uday e Qusay ¿ mas num prédio pertencente à sua família no centro de Awja. Sobre seu caixão foi colocada uma bandeira do Iraque.

Cerca de cem pessoas assistiram ao enterro e outras centenas passaram diante de seu caixão para homenageá-lo. O clima era de indignação com a execução.

¿ Os persas o mataram. Não posso acreditar nisso. Por Deus, nos vingaremos! ¿ disse um homem que participou do enterro, usando o termo usado normalmente por árabe sunitas como Saddam para criticar os árabes xiitas, comparando-os aos vizinhos e tradicionais inimigos iranianos, que também são em sua maioria xiitas.

Outro homem que participou da cerimônia fúnebre do ex-ditador iraquiano também extravasou sua raiva.

¿ Tudo o que podemos fazer agora é atacar os americanos e o governo ¿ disse.

O corpo de Saddam foi levado para a cidade dentro de um helicóptero americano, depois de o governo iraquiano tê-lo entregue para as autoridades de Saladino e de seu clã.

¿ Assinamos um comprovante antes de receber o corpo. Pudemos constatar que o ex-presidente foi tratado conforme a lei e não notamos quaisquer sinais de maus-tratos. Tinha só um machucado no rosto devido à execução ¿ disse o vice-governador de Saladino, Abdullah Jabara.

Premier convoca à reconstrução

De acordo com membros do clã Albu Nasir, ao lado do prédio em que Saddam foi enterrado será erguida uma biblioteca presidencial e uma escola religiosa.

¿ Queremos transformar este lugar num edifício apropriado. Isso honrará a memória de Saddam Hussein ¿ disse Muayed al-Hazaa, que disse ser primo do ex-ditador.

A construção de uma escola religiosa é algo considerado curioso por especialistas, que lembram que Saddam chegou e se manteve no poder por controlar o Partido Baath, fortemente secular e adversário de líderes islâmicos. Somente após a Guerra do Golfo (1991) ele passou a fazer discursos com citações muçulmanas, numa tentativa de angariar apoio islâmico.

Enterros simbólicos ocorreram em várias outras cidades de maioria árabe sunita no Iraque, inclusive no bairro Amriya, em Bagdá. Com cerca de 20% da população do país, os árabes sunitas foram o poder dominante durante o brutal regime de Saddam.

Em Tikrit, capital da província de Saladino e apenas quatro quilômetros ao norte de Awja, uma manifestação de protesto contra a execução de Saddam foi desbaratada por soldados iraquianos. A região de Tikrit e Awja está sob toque de recolher desde sexta-feira.

Enquanto as principais autoridades curdas e xiitas do governo hesitaram em dar a permissão para a execução de Saddam ¿ o presidente curdo Jalal Talabani afirmou que era contra a pena de morte ¿ o premier xiita Nuri al-Maliki acelerou o processo. O enforcamento acabou ocorrendo no início (para os sunitas) do principal feriado do calendário islâmico, algo considerado desrespeitoso por muitos. Apesar de receber críticas de pessoas envolvidas no processo judicial, Maliki parece ter angariado apoio dos xiitas. Porém, pode haver reações de sunitas contra o governo.

Ontem o premier pediu a união dos iraquianos:

¿ Convoco os homens do regime antigo e manipulados por ele a reconsiderar suas posições. A porta ainda está aberta para cada pessoa que não tenha sangue inocente nas mãos se juntar à reconstrução do Iraque, que será de todos os iraquianos sem exceção ou discriminação.

O governo americano anunciou ontem a morte do militar de número três mil no Iraque. O presidente George W. Bush, que está de férias em seu rancho, no Texas, disse ter ficado sentido com a morte do soldado Dustin Donica, de 22 anos, mas alertou o povo americano que não há um fim próximo na luta contra o terrorismo.