Título: O que falta ao projeto de Nação
Autor: Braga, Saturnino
Fonte: O Globo, 02/01/2007, Opinião, p. 7
O Império definiu nos tratados quase todo o mapa do território brasileiro, e a República, logo no início, completou a tarefa com a anexação do Acre. O Estado era eminentemente patrimonialista, e o povo ainda não havia; o sistema era escravocrata.
A República surgiu com a Abolição, mas não foi capaz de dar institucionalidade ao povo. O território continuou no mapa, desocupado em sua maior parte, e o Estado, ainda mais patrimonialista, propriedade das oligarquias regionais.
Com a Revolução de Trinta se implantou o primeiro e grande estágio do projeto de Nação Brasileira: o Estado foi criado, deixando, aos poucos, de ser propriedade das oligarquias, com a racionalização dada pelo Dasp, a instituição dos concursos públicos para a admissão dos servidores e a criação do órgão de informação estatística, o IBGE; a economia foi organizada passo a passo, com institutos para cuidar de setores vitais, com a construção da base industrial, como a CSN, depois a Petrobras, o BNDE, a Eletrobras. O povo foi pela primeira vez considerado, com a instituição da legislação trabalhista e do salário mínimo. O grande líder político desta profunda transformação, Getúlio Vargas, positivista convicto, nada democrático, foi o maior estadista da história brasileira - hoje assim reconhecido; mas, na época, foi levado ao suicídio para não ser deposto por uma campanha avassaladora da oposição e da imprensa, que o chamavam de o maior corrupto de todos os nossos tempos, o patrocinador do "mar de lama". Eu vi; eu me lembro. E ainda tem gente, hoje, querendo ressuscitar Carlos Lacerda para repetir aquele trabalho de demolição.
O segundo estágio veio com outro grande estadista, Juscelino Kubitschek, não apenas um continuador de Vargas no desenvolvimentismo econômico, mas um propulsor da democratização política e, principalmente, o alavancador da ocupação do território. O Brasil passou então a ter Estado e território; o povo se animou e quis também ganhar um novo estágio, em seguida, com João Goulart, mas não conseguiu - ficou onde Vargas o tinha posto há trinta anos. Juscelino é hoje justamente reverenciado; na época, foi chamado pela mesma oposição conservadora, endinheirada, udenista, de patrocinador da gigantesca ladroagem na construção de Brasília. Eu vi; eu me lembro bem.
O regime militar manteve o projeto Nacional no mesmo ponto deixado por Kubitschek; retrocederam na democracia, tamponando os anseios do povo, em nome da ordem. E a democratização de Ulisses Guimarães, vinte anos depois, trouxe outro retrocesso: a destruição do Estado, o neoliberalismo, a concentração de riqueza, a marginalização crescente do povo pauperizado. O projeto de nação foi esquecido; chegou-se a dizer que, no mundo globalizado, não haveria mais lugar para nações.
O desastre nacional parecia iminente; a sociedade abandonava os valores tradicionais, desacreditava nas instituições, caía no cinismo do mercado; o Brasil seguiria o destino dos países que mais açodadamente haviam mergulhado no neoliberalismo: a Argentina e o México, espatifados em crise.
Foi o povo, exatamente o terceiro fator do trinômio nacional que não havia ainda sido estruturado nos estágios anteriores, que compreendeu e rejeitou esta iminência. Uma divisão irreparável entre os brasileiros do mercado e os excluídos caminhava depressa, consagrando a injustiça estrutural e minando o fundamento ético da nação. O povo elegeu Lula para retomar o projeto e realizar o seu terceiro estágio: a distribuição do bolo sem esperar o crescimento; a incorporação dos marginalizados à mesa das refeições; a correção das desigualdades regionais.
Tem sido difícil: a grita acusatória da oposição udenista e da mídia lembra muito os tempos de Vargas e Kubitschek ? eu, que vi, me recordo bem. Mas o terceiro estágio avança. Talvez com prudência excessiva, atemorizado pelas ameaças, mas avança. Primeiro foi preciso reconstruir o Estado desmanchado, e, depois, aos poucos, implantar o Bolsa Família, o salário mínimo palpável, o Fundeb, a agricultura familiar, a reforma agrária mais rápida, o microcrédito, o ProUni, as cotas universitárias, o desenvolvimento do Nordeste. E o povo vai reconhecendo; ele, que sente, que sabe, reconhece.
Tem sido difícil. Talvez seja mais ainda daqui para a frente. Mas creio na realização deste terceiro estágio faltante. Depois dele, o Brasil será, então, verdadeiramente uma Nação.