Título: O papel redistributivo do INSS
Autor: Cocco, Giuseppe
Fonte: O Globo, 04/01/2007, Opinião, p. 7

Após uma longa e áspera batalha eleitoral, um tênue consenso parece ter se instalado: é preciso "destravar o país para que ele possa crescer!" Mas esse consenso logo esvanece quando se trata de saber como fazer. Com efeito, o debate é pelo menos tão "travado" quanto as almejadas taxas de crescimento. A questão da Previdência concentra todos os impasses desse debate.

Para alguns (no campo "neoliberal"), é preciso cortar o financiamento público do "déficit" para que os investimentos deslanchem. Para outros (no campo "antineoliberal"), o déficit da Previdência é de financiamento (o Estado não realizaria todos os repasses orçamentários previstos).

Observado superficialmente, esse debate parece marcado por um dissenso insolúvel. Na realidade, essas posições são muito mais consensuais do que parecem e é esse consenso que trava o debate. Por quê? Porque os dois lados apenas defendem, em função dos "interesses" representados, opções opostas da mesma contabilidade! Nos dois casos, a Previdência é um gasto. Para uns, é preciso "equilibrá-lo" pelos cortes; para os outros, pelo financiamento. A arbitragem concerne sempre aos gastos (a serem cortados ou subsidiados) e, precisamente por isso, é impossível.

O fato é que, no capitalismo contemporâneo, a Previdência não é mais um gasto, nem o resultado final do crescimento econômico (a proteção contra o ocaso do emprego: doenças, acidentes, velhice...). Pelo contrário, hoje em dia, o emprego é estruturalmente aleatório: flexível, precário, móvel, intermitente etc. A proteção torna-se, pois, uma condição a priori da mobilização produtiva de um trabalho que não coincide mais com o "emprego": para ser produtivo, é preciso ter saúde, educação, habitação, conexão e - sobretudo - uma renda não mais condicionada ao fato de estar dentro da relação de emprego.

Eis que uma nova linha de conflito aparece e, por trás dela, a possibilidade de um novo pacto. Por um lado, visa-se a desproteger o trabalhador (por exemplo, desmontando o atual sistema de previdência). Pelo outro, multiplicam-se os esforços para proteger o "trabalho" (seja o "posto de trabalho" o que dele resulta: a obra, a mercadoria e o copyright). Desprotege-se o trabalho livre (a atividade humana de criação) para proteger o que sobra do "emprego", ou seja, do trabalho subordinado. É aqui que encontramos o consenso - mesmo que paradoxal - entre neoliberais e crítica tradicional: todos concordam em afirmar que a proteção social deve passar pelo emprego! A Previdência continua a ser enxergada como gasto indexado ao trabalho individual objetivado na obra (o produto comercializável) tanto quanto no posto de trabalho. Essa previdência sempre será deficitária - nesse caso, excesso ou deficiência dos gastos são simétricos!

Mas, se pensamos a Previdência como indexador do trabalho social que precisa de uma esfera comum que proteja sua atividade criadora (ao passo que a própria obra - como ensina o movimento do copyleft e do software livre - se socializa criando novo comum), então, nessa outra perspectiva, a Previdência se torna um dos principais itens de investimento: aquele que produz cidadania (o que as empresas chamam de "capital humano" e que muitas agências - na esteira de Amartya Sen - tentam mensurar com novos indicadores de desenvolvimento... humano). Nessa perspectiva, é possível pensar um novo pacto para o desenvolvimento sustentável. Esse passa necessariamente pelo reconhecimento do papel redistributivo do inss (e das outras políticas sociais) por meio de sua consolidação em um dispositivo de proteção universal (a renda optimal para todos). Só com base nessa rede de proteção consolidada será então possível "descolar" o salário mínimo de sua atual função (inercial) de coeficiente da Previdência, para que possa se tornar o instrumento eficaz de uma valorização salarial sem a qual a modernização produtiva do país sempre será demasiadamente lenta.