Título: Simbolismo concreto
Autor: Corrêa, Ricardo de Gouvêa
Fonte: O Globo, 09/01/2007, Opinião, p. 7

Moradias, praças, escolas, fábricas e escritórios se assentam, literalmente, sobre terrenos urbanos. Uma sociedade como a brasileira, com 80% de sua população vivendo nas cidades, se assenta, simbolicamente, sobre a forma como distribui sua terra na pólis. No país, esta distribuição é injusta. Historicamente os pobres não têm acesso a um solo seguro, infra-estruturado e regularizado.

Como essa sociedade precisa da força de trabalho dos pobres para construir as cidades, com moradias, praças, escolas, fábricas e escritórios, e como estes não podem corporalmente se extinguir à noite para na manhã seguinte se ¿reincorporar¿ para o trabalho braçal, nossa sociedade, das mais injustas do mundo, permite aos ¿jardineiros, guardas noturnos, casais, passageiros, bombeiros e babás¿ (como canta Chico Buarque) que ocupem morros, áreas insalubres, de risco e sem registro legal. Esta última condição, a da irregularidade fundiária, é a garantia da não-¿incorporação¿ dos pobres num sistema de garantia de direitos, da perpetuação de sua condição de cidadania etérea, além, é claro, de permitir sua fácil remoção sempre que interesses econômicos ou discriminatórios se apresentem.

Mas a sociedade vai mudando, realizando conquistas; primeiro na simbologia de seu arcabouço jurídico, depois na vida concreta das pessoas. O Brasil possui hoje uma legislação urbana exemplar: o ¿Estatuto da Cidade¿, que este ano completa 5 anos de promulgação. O Estatuto permite a reparação histórica da exclusão territorial a que os pobres foram submetidos.

O trabalho de regularização fundiária que a Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião está realizando na simbólica Favela da Rocinha é uma concretização do que reza o Estatuto das Cidades. Em parceria com a Pastoral de Favelas, as associações de moradores locais e com o apoio do Ministério das Cidades, e mais recentemente do Ministério da Justiça e das Nações Unidas, as primeiras ações já foram ajuizadas, estando agendadas outras audiências para ainda este ano.

Em recente solenidade na favela, quando foram entregues os protocolos destas primeiras ações aos seus respectivos moradores, era visível sua emoção: pairava no ar que os ¿faxineiros, os que balançam nas construções, as bilheteiras, baleiros e garçons¿ sentiam-se ascendendo na simbólica escada de sua dignidade.

Com a regularização fundiária eles terão benefícios de natureza econômica e material (valorização do imóvel; acesso a empréstimos; acesso legal à implantação e manutenção de redes de água e esgoto; etc.), como também terá benefícios toda a cidade (ativação da economia urbana; preservação ambiental; ampliação da cobertura da legislação urbanística; etc.); entretanto o que se quer aqui é destacar uma outra dimensão do fato. Perversa e simbolicamente, no Brasil, nunca se quis concretizar e enraizar a cidadania dos pobres, fechando-lhes a porta já na entrada das cidades: em seu acesso a uma terra segura, infra-estruturada e legalizada. A regularização fundiária, ambiental e urbanística significa, simbolicamente e ao revés, a abertura desta porta. A partir daí ocorrerá sem dúvida um trajeto de mudanças estruturais na vida dos envolvidos: estarão incluídos no mapa das cidades e no roteiro da cidadania.

RICARDO DE GOUVÊA CORRÊA é coordenador executivo da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião.