Título: Tolerância zero
Autor: Darze, Jorge
Fonte: O Globo, 11/01/2007, Opinião, p. 7

Dezenove mortes. Foi este o resultado da barbárie praticada por criminosos no Rio de Janeiro no dia 28 de dezembro. A repercussão atravessou as nossas fronteiras e foi tema dos discursos de posse do presidente da República e do governador do estado, que deram ao assunto o status de segurança nacional. É uma situação de extrema gravidade, mas nós, médicos do Rio, temos vivenciado outra forma de violência que ameaça diariamente os cidadãos que procuram as unidades do sistema público de saúde. Não foi à toa que o novo governo estadual, entre seus primeiros decretos, anunciou estado de emergência no setor, ratificando e estendendo o que já havia sido denunciado por nós e depois pelo presidente Lula, em março de 2005, com a decretação da calamidade pública no município. Concluímos que o que já era grave na rede municipal ficou pior, e a ¿doença¿ se estendeu.

É fácil entender por que a última pesquisa realizada por nós e pelo Ibope apontava a crise como primeira grande preocupação do povo, à frente até mesmo da segurança. Um relatório do Sindicato dos Médicos, elaborado a partir de uma visita às seis grandes emergências estaduais, revelou um quadro gravíssimo, com aumento da mortalidade de pacientes ou agravamento do seu estado. Não é preciso ser especialista para reconhecer que a medicina praticada hoje na maior parte da rede pública em nosso estado está longe do chamado exercício ético profissional, com o mau resultado ocorrendo em face da precariedade das condições de trabalho. Tal fato leva os médicos muitas vezes a responderem na Justiça, quando na verdade caberia aos representantes do poder público sentar no banco dos réus. Levantamento de nosso Departamento Jurídico constatou o aumento de 50% no número de processos contra médicos entre 2004 e 2005, sendo que na maioria das vezes os fatos geradores ocorreram na rede pública. É importante destacar que a medicina brasileira não deve nada ao chamado mundo desenvolvido. Aliás, o fato de saber o que deve ser feito e a impossibilidade de sua aplicação gera o que conhecemos como a síndrome do esgotamento profissional, outra conseqüência do ambiente de trabalho adverso.

Essa crise que tanto denunciamos nos últimos anos, e que tem sido constantemente levada ao conhecimento do Ministério Público e do Judiciário, foi agora ratificada pelo governador, que em recente visita ao Hospital Albert Schweitzer a definiu como um genocídio. Diante desse quadro, toda a sociedade clama por uma solução urgente. A rede pública de saúde há muitos anos não recebe recursos para investimentos. Obras iniciadas não são concluídas, reformas aguardam por seu início, há infiltrações e pane na parte elétrica, entre outros exemplos. Outra face da crise é a tecnologia superada no tempo, a não-incorporação de métodos diagnósticos mais modernos, a falta de manutenção e a demorada correção dos defeitos.

Além do desabastecimento de importantes insumos, merece destaque como terceira causa do caos a falência da política de recursos humanos. Para se ter uma idéia, após o último e único concurso público realizado em 2001, quando três mil médicos aprovados foram chamados para integrar as equipes, quase 70% dos profissionais evadiram-se devido aos baixos salários e às péssimas condições de trabalho. Os salários, é bom destacar, não sofrem reajuste desde 1998, quando foi concedida uma gratificação sobre o vencimento-base, que era e continua sendo de R$160. Além disso, é preciso que o estado tenha efetivamente um secretário de Saúde. Lamentavelmente, a gestão passada foi débil na indução de políticas públicas nos municípios, aos quais cabe garantir o pleno funcionamento da rede básica e a unificação de esforços para a criação dos pólos regionais para média e alta complexidade, entre outras funções.

Temos esperanças de que o governador cumpra os compromissos assumidos publicamente com os médicos em encontro na sede de nossa entidade. Com a mesma veemência com que ele e o presidente da República condenaram as mortes resultantes dos atos terroristas, esperamos agora que todos se empenhem para evitar as mortes decorrentes da omissão do poder público.

JORGE DARZE é presidente do Sindicato dos Médicos do Município do RJ. E-mail: presidencia@sinmedrj.org.br.