Título: Três discursos de posse
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Globo, 11/01/2007, Opinião, p. 7

Na democracia, política é, antes de tudo, uma visão de futuro. Lula da Silva, José Serra e Aécio Neves são os líderes que demarcarão os horizontes de possibilidades de 2010. Seus discursos de posse delineiam três visões de futuro.

Eu, Deus e os pobres: a visão de Lula articula-se sobre o triângulo mágico do salvacionismo. Seu discurso confirmou a substituição do conceito de trabalhadores, que sustentou a formação do PT, pelo de pobres, que é a marca inconfundível do lulismo. O primeiro conceito é um patrimônio da esquerda, mas também um traço estrutural da modernidade, pois remete aos interesses da maioria da população, inclusive da classe média, e está na origem da universalização da cidadania. O segundo conceito não se inscreve na tradição de esquerda, mas na do populismo.

É um equívoco, porém, classificar o lulismo como um populismo. O tempo do populismo passou e o conceito de pobres foi apropriado como elemento do receituário político oferecido pelas instituições multilaterais. Nas formulações estratégicas do Banco Mundial, o equilíbrio fiscal dos ¿países emergentes¿ exige a renúncia à noção de direitos públicos universais, mas o imperativo da ordem solicita a aplicação de políticas compensatórias dirigidas aos excluídos. São essas as fontes da plataforma social do lulismo. Lula não é de esquerda hoje, como reconheceu, nem foi de esquerda no passado, como fingiu por algum tempo.

A conclusão do discurso sugere que sua ascensão à Presidência é um desígnio divino. Lula mencionou Deus sete vezes, mas silenciou sobre as instituições que corporificam o equilíbrio de poderes da democracia. Ele assegurou que seu governo continuará ¿consultando a opinião da sociedade organizada em conferências, conselhos e foros¿ mas quase ignorou o Parlamento. É um presságio de que persistirá na política de tratá-lo como mercadoria em liquidação.

Coisa pública, desenvolvimento e cidadania: a visão de Serra conjuga esses conceitos para oferecer uma interpretação moderna da ¿questão nacional¿. Seu discurso denunciou as ¿tentativas neopatrimonialistas de privatização do Estado¿, mas superou a crítica moral à corrupção, mostrando que a subordinação da máquina pública aos interesses de uma elite política degenerada caminha junto com a abdicação do projeto de desenvolvimento.

Em contraponto evidente ao lulismo, mas não só a ele, o governador paulista desvendou o sentido de uma política econômica que serve aos interesses das altas finanças e, em nome da estabilidade, há 25 anos produz estagnação. Uma passagem notável identificou os limites do ¿livre mercado globalizado¿ (¿o cidadão global inexiste¿) e rechaçou a ¿economia da pobreza¿, que prende os pobres na teia do clientelismo.

Serra alvejou a ¿pior combinação de juros e câmbio do mundo¿ e defendeu um ¿ativismo governamental¿ que não se confunde com o ¿Estado Desenvolvimentista¿ do passado mas orienta-se pela promoção da cidadania, através da universalização dos direitos a educação, saúde e segurança pública. Essa linguagem foi, um dia, ao menos parcialmente, a do PT. Exatamente por isso, José Dirceu e Tarso Genro sentiram o golpe e, na falta de um dossiê, dispararam a ¿acusação¿ de que Serra ergue uma plataforma para 2010.

Minas Gerais, federação e razão técnica: a visão de Aécio oferece mais uma narrativa do mito da sabedoria política mineira, faz o elogio da gestão virtuosa e interpreta o Brasil como a soma dos seus estados. O governador não teceu críticas ao governo Lula. Em compensação, conclamou a ¿refundarmos a federação¿, pela via da descentralização dos recursos tributários.

Logo depois de 1822, ninguém se identificava como brasileiro, pois todos ainda eram apenas paulistas, mineiros, baianos, pernambucanos, paraenses, gaúchos... As elites das colônias portuguesas no Brasil, formadas na moldura das capitanias, protegeram seus privilégios no ciclo imperial e os consagraram na primeira constituição republicana. Na versão de Aécio, a ¿federação¿ é um sonho de restauração das autonomias cedidas desde a Revolução de 30 e de recuperação do lugar político que Minas Gerais ocupou na República Velha.

O discurso do governador mineiro conta uma história na qual, de Tiradentes a JK, Minas Gerais faz o Brasil. Nessa história sem fim, ele próprio encarna o papel de herdeiro dos pais de Minas e da pátria. A sua plataforma para 2010 está voltada, explicitamente, às elites estaduais, que ganhariam ¿justiça tributária¿. Mas as omissões, tão caras à mitologia dos políticos mineiros, descortinam a avenida da conciliação: Aécio acalenta a hipótese de se converter no candidato de Lula.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br.