Título: Hamlet, samba-ideológico e pop-rock
Autor: Leno
Fonte: O Globo, 12/01/2007, Opinião, p. 7

Em resposta ao artigo do Nei Lopes, já em seguida ao do Martinho da Vila, as conclusões são claras: ¿Quem não gosta de samba , bom sujeito não é... É ruim da cabeça ou doente do pé.¿ São sintomáticas e convergentes as preocupações nacionalistas do ideologismo cultural com o pano de fundo das nuvens de intolerância e censura que já se formam no horizonte. Aceitas por artistas-chapa-branca (de vários gêneros, sejamos justos) com mansões de frente para o mar, terrenos com petróleo ou imóveis em Paris. Já o samba ocupa muito bem seu espaço em shows, rádios e TVs, o Zeca Pagodinho é um dos maiores vendedores de discos do Brasil, entre outros do gênero. Tinha o Noca da Portela na Secretaria de Cultura, além de o sambista Sérgio Cabral ser pai do novo governador do Rio de Janeiro.

Insatisfeitos, ideólogos tentam impor seus valores culturais. O FIC, Festival Internacional da Canção, é acusado de ter sido projeto de dominação estético-cultural globalizante, mas não era bem o que achava o regime militar quando censurou muitas das canções concorrentes, incluindo uma que fiz com Raul Seixas em 1971. Porém, foi o palco onde se revelou a hoje chamada Madrinha do Samba. Dominação cultural já se tenta impor há décadas, desde a intolerante passeata contra a guitarra elétrica e os cabeludos do iê-iê-iê nos anos 60, protagonizada por alguns dos que apoiaram um petismo predador. O samba não tem culpa. Seu legado de grandes e antigas obras está aí mesmo. Mas foi a Jovem Guarda quem recebeu de braços abertos um sambista rejeitado e excluído pelos puristas da época. Seu nome: Jorge Ben. Sem comentários. Racismo não seria acusar músicos de fazerem ¿rockzinho de branco¿ como se aceitassem ouvir falar em ¿sambinha de preto¿?

O pop-rock brasileiro sempre se pautou pela tolerância advinda da libertária música negra. Americana sim, e daí? (Nixon também odiava o rock, chegando a colocar o FBI na cola do John Lennon. Foi presidente ¿impichado¿, ao contrário de tiranetes latino-americanos e seus projetos de presidência vitalícia, estimuladores da apropriação de nosso patrimônio nacional, colocando tropas ¿bolivarianas¿ na nossa fronteira e recebendo homenagens em desfiles de escolas de samba.) Cadê a tão glorificada ¿malandragem¿? E a censura-companheira através da Ancinav, e do projeto-ideológico que se vislumbra, como alertou brilhantemente o filósofo Roberto Romano em recente programa Globo News ¿ Painel? Sem protestos de artistas famosos como Beth Carvalho ¿ fiel admiradora do ¿democrata¿ e ¿muy amigo¿ Hugo Chávez, autora aqui no GLOBO da rancorosa frase ¿A Jovem Guarda atrasou em 10 anos a hegemonia do samba.¿ Hegemonia, isto é: domínio. Sucesso apenas não é suficiente.

Gente influente, muitos formadores de opinião. Autores de pérolas como ¿O mensalão nunca existiu¿ ou ¿A ética que se dane¿! (Copyright Wagner Tiso) Cuide-se quem discordar, ou será excluído dos patrocínios das estatais. Enquanto isso, o jabá nas rádios e TVs ¿ espécie de mensalão da música ¿ leva à exclusão milhares de cantores, músicos e compositores, sem que se toque no assunto. Como nosso prestigiado ministro da Cultura, Gilberto Gil, que em quatro anos no poder não se manifestou contra essa ¿jaberração¿ ou tomou qualquer providência a respeito, apesar de ter várias ferramentas para isso. Óbvia questão de concorrência desleal. Isso, sim, uma ameaça à nossa cultura musical, à livre criatividade e sobrevivência profissional de cantores e compositores de todos os gênero no Brasil. E não o pessoal do pop-rock.

Porém, muitos ideólogos (enquanto discutem o sexo dos anjos) estão mais preocupados com a semântica-hamletiana: ¿Ser ou não ser MPB.¿ (E que me perdoem pela ¿colonizada¿ citação de Shakespeare. Melhor citar Ariano Suassuna: ¿Esses Beatles prejudicam nossa formação cultural.¿) Falam em raízes da música brasileira mas ignoram os índios, os únicos que poderiam reivindicá-la. Reclama o Nei Lopes, desta vez com razão, da pouca publicação de livros de autores afro-descendentes (mesmo não sendo Machado de Assis ¿ considerado o maior de todos os escritores brasileiros ¿ exatamente um ariano). Mas como estranhar, se nem a maioria de brasileiros de classes A e B, formados em universidades, tem o hábito de leitura? Reflexo da tal cultura da malandragem, onde livro é coisa de ¿otário¿? Legal mesmo é carnaval, futebol e cervejinha.

Já os artistas do pop-rock nacional (não necessariamente merecedores de canonização) foram dos poucos a levantar a voz em protesto contra a roubalheira e ocupação do Estado pelo populismo-nacionalista. É bom lembrar as certeiras palavras escritas ainda nos anos 70 por Jean-François Revel: ¿Os países do Terceiro Mundo, quase todos mergulhados culturalmente no passado e tomados da obsessão de redescobrir as próprias raízes, tendem a se afundar nele cada vez mais e apertar o máximo possível o freio que se opõe a todo progresso: religião islâmica, organização tribal na África, sistema de castas na Índia etc.¿ Atualíssimo.

Tive a honra de visitar e passar várias horas na companhia do maior folclorista do Brasil, Luís da Câmara Cascudo, em Natal, poucos meses antes da sua morte. Quando lhe perguntei sobre o que achava da influência estrangeira nas artes, me respondeu com a serenidade dos sábios: ¿O barro pode vir de qualquer canto, mas quem dá forma ao jarro é o artesão.¿ E quem sou eu para discordar de mestre Cascudo?

LENO, da dupla Leno e Lilian, é cantor e compositor.