Título: Impasse político
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 13/01/2007, O País, p. 4

A disputa pela presidência da Câmara, e a pequena política envolvida nas decisões partidárias, mascaram o que deveria ser o ponto focal das discussões entre os parlamentares: a recuperação do poder de decisão do Congresso, hoje submisso ao Executivo. Aldo Rebelo, em processo de transformação de candidato ¿in pectore¿ do presidente Lula para uma alternativa oposicionista, chama a atenção para a independência entre os poderes, atribuindo ao Executivo uma interferência indevida, através de instrumentos burocráticos típicos de quem exerce o poder, como a liberação de verbas a favor dos que apóiam o candidato do PT. A disputa pela presidência da Câmara ganha, assim, contornos de luta pela independência do Legislativo.

Fora o fato de que a eleição de Aldo na substituição de Severino Cavalcanti foi conseguida com as mesmas armas, as circunstâncias políticas estão colocando o ex-coordenador político do governo na rota da oposição, se não ao governo, pelo menos ao PT, que já o havia atazanado quando exercia a função em substituição a José Dirceu. O mesmo Dirceu que hoje é um dos coordenadores da candidatura de Chinaglia.

E é porque o que está em jogo é o fortalecimento do PT que a decisão do PSDB torna-se inexplicável. A lógica política do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se contrapõe à lógica burocrática do líder Jutahy Magalhães Junior e dos governadores que representou na jogada adesista.

Segundo Fernando Henrique, ¿havendo uma cisão na base governista, à qual, pela lógica política, caberia a presidência da Câmara, abrir-se-ia uma alternativa para a oposição. Aliás, mais de uma, penso, dado o anúncio posterior de eventual candidato de outros na linha da independência do Congresso nas questões institucionais e do não comprometimento com as tantas pizzas do passado recente¿. Não haveria razão, portanto, para que o PSDB ajudasse o PT nessa disputa política interna da coalizão governista.

O líder do PSDB, deputado Jutahy Magalhães Junior, alega que respeitar a proporcionalidade na composição da Mesa da Câmara, apoiando o candidato petista Arlindo Chinaglia à presidência, significa dar racionalidade à atividade legislativa e permitir que parlamentares de primeiro mandato, ou sem grande exposição na mídia, possam fazer seu trabalho legislativo nas comissões com o respaldo do regimento interno, sem que precisem de pistolões ou padrinhos.

Seria uma maneira de garantir a democratização dos trabalhos legislativos, sem significar uma adesão ao governo. Se assim fosse, o candidato petista teria que assumir publicamente compromissos com pontos programáticos que constam de propostas do PDT, do chamado ¿grupo independente¿ e de diversas associações representativas da sociedade civil, entre elas a Transparência Brasil. Além da discussão pura e simples da remuneração dos parlamentares, existem outros pontos importantes para que o Congresso recupere sua autonomia diante do Poder Executivo e assuma a liderança no que é seu papel essencial, o de legislar.

Por isso o PDT propôs, e o ¿grupo independente¿ está assumindo também como sua, a criação de uma Comissão Permanente de Normas e Projetos, destinada a:

a) fixar prazos diferenciados, excepcionalmente, para a tramitação de matérias de relevante impacto nacional.

b) elaborar proposições. O Legislativo deve ter iniciativas das matérias mais relevantes para o país.

c) definir, por emenda constitucional, os casos de ¿relevância e urgência¿ sobre os quais possam ser editadas medidas provisórias.

Sem que isso seja feito, o Congresso não sairá da situação secundária em que hoje se encontra na formulação das políticas nacionais, situação essa que gera em conseqüência um estado que o cientista político Sérgio Abranches classificou de ¿alienação parlamentar das responsabilidades com as políticas públicas¿, que estimula a relação clientelista com o Poder Executivo.

Num trabalho intitulado ¿O Processo Legislativo: tendência ao impasse¿, Sérgio Abranches fez um acurado exame da atuação do Legislativo, chegando à conclusão de que houve uma clara mudança, para pior, no seu desempenho a partir do ano 2000, quando examinado pelo índice de aprovação de projetos.

A partir daquele ano, a proporção de matérias que tramitam sem que sejam aprovadas ou rejeitadas aumenta exponencialmente, e esse aumento do que o cientista político chama de ¿não-decisão¿ tem uma razão específica: as novas regras de aprovação de medidas provisórias, que passaram a trancar a pauta a partir de 45 dias de sua tramitação, dominando, assim, o processo legislativo.

A proporção de matérias não apreciadas muda de patamar do primeiro para o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, de uma média de 31% para 58%, chegando a 85% no primeiro governo Lula. Para Sérgio Abranches, a edição de medidas provisórias passou a ser um instrumento de bloqueio do Legislativo pelo Executivo: ¿o Congresso vive como se estivéssemos em um estado de emergência insuperável¿. O uso excessivo de medidas provisórias, sem que os temas sejam ¿relevantes¿ ou ¿urgentes¿, ¿reduz significativamente a qualidade da democracia¿, adverte Abranches.

Ele fez um exame de 240 medidas provisórias editadas durante o primeiro governo Lula, e não encontrou ¿nem 5% de matérias que justificassem uma MP¿. Sérgio Abranches lembra que há duas dimensões do poder legislativo dos presidentes: a constitucional e a política, quando o parlamento cede ao presidente esse poder. Citando os politicólogos Mathew Shugart e John Carey, em estudo da Universidade de Cambridge, Abranches destaca que quando a ¿perda da agência¿ chega a limites elevados, com o Legislativo deixando de ser o principal do processo legislativo, ¿pode-se configurar um caso de usurpação de poderes¿. (Continua amanhã)