Título: A luta contra a ditadura termina aqui
Autor: Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 14/01/2007, O País, p. 10

Ex-ativista político admite que agora terá de pedir desculpas ao povo do Acre

Raimundo Cardoso conta que sua luta contra a ditadura militar termina agora, com a reconquista de sua verdadeira identidade. O ex-ativista político diz que, com a revelação de sua história, terá que pedir desculpas ao povo do Acre por ter escondido seu nome para sobreviver. Cardoso afirmou que, se fosse um ¿europeu¿, como chama os brasileiros exilados na Europa, seu problema estaria resolvido há anos. ¿Mas eu vim do quinto mundo, da mata, do interior¿.

Qual o significado dessa decisão da Comissão de Anistia?

RAIMUNDO CARDOSO: É o resgate das minhas conquistas, dos meus direitos. O que a comissão fez é o que a Justiça deveria ter feito antes. Pleiteava meu diploma da universidade, meu emprego que conquistei e meu nome. Era pelo que eu mais lutava, o que mais sonhava.

O que muda agora com sua real identidade de volta?

RAIMUNDO: Foi uma vitória política, uma questão de honra e de princípio. Vou viver confortavelmente legal, o que não aconteceu até agora. Foi a ditadura quem criou a ilegalidade. Desde 1967 não uso meu nome. Agora estarei conquistando minha verdadeira identidade e cidadania. A minha luta contra a ditadura termina aqui.

Como acha que as pessoas que o conhecem vão reagir quando souberem sua verdadeira identidade?

RAIMUNDO: Terei que pedir desculpas ao povo, principalmente do Acre, que não sabia da história e agora vai saber. Vai ter que entender isso. Vou pedir desculpas por um ato que não cometi. Um estado de necessidade me levou a isso. Tive que driblar a ditadura, ser versátil. Não posso estar enganando um povo. Só o povo saber que meu nome não é aquele, e eu não ter dito nunca nada antes, vai se sentir enganado. Gente que me conhece há anos, que trabalhou e trabalha comigo, e os que votaram em mim. Vou ter que dizer por que não podia abrir.

Quais prejuízos teve vivendo com identidade falsa?

RAIMUNDO: Prejuízos incalculáveis. A ausência da minha família. Prejuízo de ordem cultural e profissional. Eu poderia ter ascendido em vários campos do conhecimento, conquistado títulos, diplomas, o que não pude fazer ao viver com outro nome. Poderia ter feito uma carreira política. Mas, com a identidade falsa, estaria cometendo um ato ilegal em plena legalidade.

Como é sua vida como Raimundo Cardoso?

RAIMUNDO: O Cardoso (como é conhecido) foi um companheiro de longos anos. Foi ele quem conquistou tudo. O Carlos Augusto ganhou nome no Ceará, depois o apelido de Parangaba. Com o Cardoso eu estudei, conquistei diplomas, cursei universidade, fiz pós-graduação, passei num concurso público e cheguei a superintendente do Incra. Talvez até inclua esse sobrenome no meu verdadeiro nome.

Não teve receio de que poderia responder a processo por falsidade ideológica?

RAIMUNDO: Claro. Responderia a um processo desses, mas desde que os militares responsáveis pela ditadura, que mataram, torturaram e desapareceram com pessoas, fossem julgados, punidos, expulsos do Exército, presos e, alguns, fuzilados.

Se fosse um comunista famoso, acredita que sua situação estaria resolvida?

RAIMUNDO: Não só isso. Se eu fosse um ¿europeu¿ (um brasileiro exilado na Europa) e chegasse aqui falando inglês, alemão, italiano e o diabo, e com diplomas, estaria lá no topo da administração federal ou disputando mandato federal, como outros disputaram e depois até causaram grandes decepções. Não sei se viria como grande sociólogo, historiador, não sei.

Critica os "europeus"?

RAIMUNDO: Eu os respeito. Cada um conforme sua capacidade e possibilidade. Alguns não agüentam o meio rural. Era mais cômodo eu ir para o Chile, no tempo do Allende, e depois ter ido para a Europa. Até hoje batalho pela minha identidade. Não estou pedindo nada do Estado. Os ¿europeus¿ chegaram com tudo ao alcance das mãos. Eu não. Vim lá do quinto mundo, do interior da floresta, do seringueiro, da cabocla quebradeira de coco, do roçado do cacau.