Título: A dupla identidade de um clandestino na democracia
Autor: Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 14/01/2007, O País, p. 10

Com nome falso desde 1972, o ex-militante Carlos volta a ser Raimundo

BRASÍLIA. A perseguição, a prisão e a tortura executadas pela ditadura instalada no país em 1964 mudaram a vida do cearense Carlos Augusto Lima Paz. Para sobreviver ao encalço de militares, o ex-ativista político trocou de nome três vezes, mas até agora não havia conseguido recuperar a identidade original. Desde 1972, Carlos é conhecido como Raimundo Cardoso de Freitas. É ainda um clandestino em plena democracia.

Com a identidade falsa, Raimundo fez o supletivo, formou-se em agronomia, passou em concurso público e chegou até a concorrer a prefeito de Rio Branco (Acre), em 1985, pelo PT. Hoje, ele é superintendente do Incra no Acre.

No mês passado, a Comissão de Anistia do governo aprovou o direito de Raimundo voltar a ser quem é: Carlos Augusto. Ele também teve direito a uma indenização de R$100 mil. Com a decisão da comissão, poderá regularizar sua documentação, transferir todos os seus diplomas para seu nome verdadeiro e se apresentar às autoridades brasileiras com sua identidade de batismo. O tempo que trabalhou como Raimundo será contabilizado para efeito de aposentadoria em nome de Carlos Augusto. Com o fim da ditadura, em 1985, ele brigou na Justiça para retomar sua real identidade, mas não teve sucesso.

¿ A perda do nome é a perda dos laços familiares. Não pude, por exemplo, dar meu sobrenome verdadeiro às minhas filhas nem incluir meus pais como dependentes.

Raimundo não se casou, mas tem duas filhas ¿ Maira e Marajara ¿ que foram batizadas com o falso sobrenome paterno, Freitas.

Raimundo fazia política estudantil em Fortaleza (CE) na década de 60. Tinha o apelido de Parangaba, nome do bairro em que nasceu na cidade. Foi preso durante seis meses em 1964, sofreu tortura psicológica, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, impedido de estudar e sair do Ceará sem autorização do Exército. Cercado, decidiu fugir e mudar de identidade. Antes de receber do PCdoB os documentos de Raimundo, o agrônomo adotou os nomes de José Roberto e Mário Ângelo de Jesus. A história de Raimundo, revelada agora pelo GLOBO, ficou guardada durante todos esses anos.

Objetivo da fuga era aprender guerrilha no Vietnã

Logo que deixou o Ceará, Raimundo seguiu para Cuba, via Guiana Inglesa. Seu objetivo era chegar ao Vietnã, aprender técnicas de guerrilha e voltar ao Brasil para colocar em prática esses ensinamentos na luta contra a ditadura. Mas acabou preso em Cuba e seria deportado para a Guiana. Quando o navio partiu, ele pulou no mar e retornou a Cienfuegos. A aventura terminou um ano depois, quando voltou ao Brasil.

Como militante político, Raimundo fez sua luta no campo. Passou por vários estados, seguindo as orientações do PCdoB. Organizou os campesinos. Na década de 70, foi para o Amazonas, onde estudou e formou-se em agronomia, já em 1981. Foi trabalhar com os índios ticunas, no Acre. É um dos fundadores do PT nos dois estados.

Seus pais e seus oito irmãos que viviam no Ceará davam-no como morto. A versão que circulava era que tinha sido fuzilado pelos militares na Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 70. Após a anistia, Raimundo não retornou imediatamente ao Ceará. Tinha receio de ainda ser preso pelos militares. Só reapareceu na sua terra natal em 1985.