Título: Saco de gatos
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 20/01/2007, O País, p. 4

Nunca a expressão ¿saco de gatos¿ coube tão bem para definir um grupo como agora nesta reunião do Mercosul. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, chegou para o encontro no Brasil dizendo que vinha para ¿descontaminar¿ o Mercosul do neoliberalismo, e propôs seriamente que os demais países da região se integrassem no socialismo do século XXI. Não foi por acaso, portanto, que seu pupilo Evo Morales, da Bolívia, atacou a Colômbia, na presença do presidente Álvaro Uribe, acusando o país de ser dependente dos Estados Unidos, e comparando-o a outros, como Cuba, Argentina, e a própria Venezuela, que, segundo ele, vivem com dignidade no antineoliberalismo.

O presidente Lula, que tenta se equilibrar nessa barafunda regional, pediu ¿generosidade¿ no tratamento dos países menores, visando especialmente a Argentina, que não aceita que a Bolívia faça parte do bloco com algumas regalias, e, em retribuição, foi cobrado publicamente por Morales, que reclamou o aumento do preço do gás pago pelo Brasil.

Argentina e Uruguai continuaram sem se entender com relação à disputa de fábricas na fronteira, e o caminho do Uruguai está mais próximo da saída do Mercosul para fechar um acordo bilateral com os Estados Unidos.

O chanceler Celso Amorim, tentando dar uma lógica a esse ¿saco de gatos¿, ressaltou que o Mercosul não pode ser visto apenas como um bloco econômico, mas sim como um movimento geopolítico. Ora, se é assim, os movimentos políticos radicais de Chávez, Morales e agora Correa, do Equador, ganham uma força que não teriam se estivéssemos tratando meramente de um bloco econômico.

O próprio presidente Lula, para minimizar a pregação de Chávez, disse que essa história de socialismo do século XXI só tinha importância na Venezuela, e praticamente classificou de demagogia para uso de política interna as fanfarronices de Chávez sobre o assunto: ¿Cada um diz o que acha melhor para seu povo¿, comentou Lula, num pragmatismo exacerbado que não enxerga os problemas que podem advir daí para o Mercosul.

Chega a ser ridículo, diante da escalada autoritária em alguns países da região e da exortação de Chávez, ao fim da reunião, para que os Estados tenham mais presença na economia da região, que o documento final do encontro exalte a democracia.

O cientista político Clóvis Brigagão, diretor-adjunto do Conselho das Américas da Universidade Candido Mendes, acha que estamos vivendo uma conjuntura política com escalada de centralismos em que líderes, principalmente Hugo Chávez, colocam-se ¿acima do jogo político democrático ¿ que está bastante debilitado em quase toda a região, incluindo o Brasil ¿ com controle progressivo do processo legislativo e do Judiciário, através de um discurso ideológico cada vez mais radicalizado e com componentes autoritários, além de contar com recursos ¿ como o petróleo e o gás ¿ para, como pano de fundo, `saldar¿ o déficit social¿.

Para ele, ¿os ingredientes utilizados por Chávez, e também por Morales, conformam uma situação de profunda instabilidade e que, no decorrer desse processo que talvez não vá durar muito, poderá, com muita probabilidade, desencadear crises e conflitos perigosos, do ponto de vista interno ¿ democracia e estabilidade institucional ¿ e externo ¿ ameaças a contratos de investimentos, expropriações e nacionalizações que poderão resultar em novas ameaças e rupturas¿.

Brigagão teme que se esteja criando ¿um eixo Venezuela-Bolívia-Cuba para atuar estrategicamente em assuntos externos importantes, como nas negociações da OMC, coalizão que não estaria de acordo com o Brasil, que lidera o G-20, e nas questões de política internacional da ONU. No Conselho de Segurança, e nas questões de direitos humanos¿.

Já o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), vê a Venezuela caminhando ¿a passos largos para um regime populista e autoritário, que em nada se diferenciará de uma ditadura como as do general Pinochet ou do general Franco¿. Já a Bolívia hoje ¿é nitidamente satelizada pelo regime chavista e trilha o mesmo caminho. Os movimentos de resistência na chamada `meia-lua¿ boliviana são preocupantes pois, num país de instituições tão fragilizadas, podem abrir caminho para um enfrentamento civil¿.

Tadeu Monteiro vê o Brasil hoje como ¿um contraponto a esse autoritarismo, mais pela força e autonomia de suas instituições, como o Judiciário, o Ministério Público, a iniciativa privada, a sociedade civil organizada e a imprensa, e menos pela atitude do governo Lula, que tem sido extremamente sinuoso a respeito das ações de Chávez e, mais recentemente, de Evo Morales¿.

Na sua análise, o Mercosul ainda é um acordo regional instável, que desde o seu nascimento depende fundamentalmente das ¿locomotivas¿ Brasil e Argentina. Do ponto de vista político, o Mercosul ainda tem pouco peso no mundo, e a grande incerteza ¿reside no fato de que Evo Morales e Hugo Chávez apresentam-se como líderes carismáticos que querem promover suas `revoluções¿¿.

Mas Monteiro é otimista. Considera que ¿os fatores de instabilidade são internos a esses países e, por enquanto, não parece que possam transbordar. Além de satelizar o regime de Evo Morales e de exercer alguma influência sobre Daniel Ortega, Chávez não conseguirá muito maior repercussão¿. Ele destaca as desavenças com Insulza, da OEA, Álvaro Uribe, da Colômbia, e Alan García, do Peru, como fatores que ¿já o isolaram na América do Sul¿.

Menos otimista é o ex chanceler Luiz Felipe Lampreia, que teme a possibilidade de a Venezuela, num arroubo bolivariano, passar da retórica para a ação e embargar o petróleo que vende para os Estados Unidos, que representa 15% da demanda americana. (Continua amanhã)