Título: Esperança e destruição no garimpo da selva
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 21/01/2007, O País, p. 12

Em um mês, mata virgem cedeu lugar a cenário de árvores abatidas e riachos desviados que lembra Serra Pelada

ELDORADO DO JUMA (AM). Faz tempo que este grito não era repetido tantas vezes na floresta: ¿Bamburrou!¿. Na gíria do garimpo, bamburrar é encontrar grande quantidade de ouro, fazer fortuna inesperadamente. Desde Serra Pelada, não se via tanta gente bamburrar. Num cenário que mistura esperança e destruição, centenas de pessoas, em um mês, transformaram o que era um trecho de mata virgem, às margens do Rio Juma, no sul do Amazonas, num impressionante garimpo. Em busca da redenção pelo ouro, garimpeiros não param de chegar todos os dias, cavando crateras, abrindo picadas, derrubando árvores, mudando cursos de riachos e desbravando implacavelmente a floresta, como fizeram gerações anteriores.

O pedreiro João da Silva e Silva, de 40 anos, bamburrou. Em três dias e meio de garimpo, este morador de Apuí, município mais próximo da extração, a 455 quilômetros de Manaus, retirou da terra quase um quilo e meio de ouro. João faz parte do pequeno grupo de garimpeiros que ¿aquilou¿, outro jargão, e mudou de vida. Vai erguer sua primeira casa de alvenaria, comprou duas motos (para ele e para a mulher, Francisca, de 26 anos) e sobrou dinheiro para uma segunda casa, que pretende alugar. Mas nem todos têm a sorte de João. A grande maioria voltará de bolsos vazios, como Irinéia Leandro, de 45 anos, há cinco dias no garimpo sem retirar um único grama.

¿ Vim de Rondônia. Quatro dias de viagem. Quero apenas dez gramas para poder voltar para casa ¿ desespera-se.

Grau elevado de pureza do ouro

As autoridades se confundem quanto ao número de pessoas concentradas ali. A prefeitura estima em quatro mil; a PM, em oito mil. Mas um dado é incontestável: o garimpo se consolida, dia após dia, como um fator de risco sanitário, social e ambiental. Não há água potável. Não há banheiro. O lixo é jogado em qualquer parte. Buracos e picadas expõem raízes de árvores que escaparam da serra elétrica e ameaçam desabar sobre o garimpo. A área, abafada e chuvosa, é um grande atoleiro. O cenário é compartilhado pelo anofelino, velho conhecido das autoridades sanitárias: o mosquito transmissor da malária.

Eldorado do Juma, dizem os especialistas, é mesmo um fenômeno. Gilmar Predebon, ourives há 22 anos, explica que o grau de pureza do ouro local é elevadíssimo. Numa escala até cem, está na casa 98. O garimpo é fértil também em lendas e personagens. Uma única pergunta produz diferentes respostas:

¿ Quem achou o ouro?

¿ Paulo, Agenor e Neguinho ¿ responde José Ferreira da Silva Filho, o Zé Capeta, de 44 anos, que se diz dono da terra.

¿ Foram o Tibúrcio e o Faixa Branca ¿ diz o fazendeiro Mário Antônio da Silva, dono da propriedade vizinha.

Os desbravadores dificilmente se apresentarão para reivindicar o mérito. Preferem a boca fechada, pois são certamente os que retiraram as maiores quantidades. Como todo garimpo, o Juma é regido por regras próprias, onde ganha mais quem chega primeiro. O chefe do posto do Incra em Apuí, Euclides Mottee, disse que as terras pertencem à União, destinadas à reforma agrária. Valério Miguel Grando, engenheiro do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), afirma que a área está bloqueada e ninguém tem licença para lavrá-la. Mas nada disso vale ali. Nem Zé Capeta, que se diz dono do lugar, conseguiu grota fértil para desbarrancar. A lei protege o pioneiro, e ele estava em Rondônia no momento da descoberta.

Só após o primeiro mês de atividade, junto com os retardatários, chegaram a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e outras autoridades federais. A PM montou um posto com 12 homens. Na quinta-feira, funcionários da Fundação de Vigilância e Saúde colhiam mosquitos para análise e distribuíam hipoclorito para purificar a água destinada ao consumo, providências tímidas diante da ação humana no local.

Governo estimula cooperativismo

É bem verdade que já havia autoridades ali muito antes. O vice-prefeito de Apuí, Aminadal Gonzada de Souza, e dois vereadores freqüentam o Juma desde o início. No sistema de castas que rege o garimpo, eles pertencem ao clã mais forte, dos donos dos barrancos mais produtivos. Estes dificilmente pegam na bateia, pois arrendam o pedaço a terceiros, no sistema de ¿meia praça¿, recebendo 50% do ouro retirado. Pela combinação, 8% pertenceriam a Zé Capeta, mas o suposto dono reclama do lucro obtido até agora.

¿ Não arrecadei nem dois quilos de ouro ¿ queixou-se.

Como o grama de ouro na região não chega a R$40, ele teria faturado cerca de R$80 mil. A tensão mais visível afeta o grupo mais fraco, dos ¿requeiros¿, os que chegaram depois. Eles compõem a grande maioria, autorizada a garimpar áreas mais pobres ou exploradas. As sobras. De chuteiras (calçado preferido no garimpo), botas ou descalços, roupas inadequadas e bateia enfiada na cabeça, eles percorrem todos os garimpos em busca de um pedaço de terra. O mais visado é a Grota Rica ou Fofoca, onde o estrago é brutal.

Sem condições de deter o avanço, Incra e DNPM estimulam os garimpeiros a formar uma cooperativa, para assegurar distribuição mais justa do ouro e apresentar um plano futuro de recuperação ambiental. Até quinta-feira, mais de 1.500 garimpeiros haviam feito a pré-inscrição e uma assembléia aconteceria ontem para fundar a entidade. Capeta quer a presidência. João da Silva e Silva, o pedreiro que aquilou, não figura entre os inscritos. Este veterano de Serra Pelada garante que não volta mais ao Juma. Como poucos, percebeu a hora de parar.

¿ Volto mais não. Deus me ajudou. Antes, gastava tudo, agora tenho família ¿ diz João, pai de quatro filhos.