Título: Dramas em comum que atravessam o oceano
Autor: Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 28/01/2007, Economia, p. 34

Eu estou em casa¿, diz um dos moradores de favelas do Rio que visitaram comunidades pobres no Quênia.

NAIRÓBI. A distância continental esconde um mar de dramas comuns. Afastados por um oceano, moradores de favelas do Rio descobriram, na última quinta-feira, que viajar para o Quênia foi quase como chegar em casa, 50 anos atrás. Vindos da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, do morro Dona Marta, na Zona Sul, de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, e do Borel, na Tijuca, eles percorreram as vielas de Kibera, a segunda maior favela do mundo. E conheceram de perto os dramas africanos discutidos durante quatro dias do Fórum Social Mundial, que se realizou em Nairóbi, de 20 a 25 deste mês: privatização da água, falta de acesso a moradias dignas, fome e alto número de contaminação por HIV.

¿ É um exato paralelo da nossa realidade. Mas como se tivéssemos voltado 50 anos no tempo ¿ disse o líder comunitário Itamar Silva, da Cidade de Deus, que participou, no fórum, de grupos de trabalho sobre problemas comuns entre Brasil e África.

Em Kibera, vive um terço dos moradores de Nairóbi. A população é estimada entre 800 mil e 1,2 milhão de habitantes. A falta completa de qualquer serviço público torna Kibera dependente do atendimento comunitário.

Nada é de graça. Um balde de água, em uma bica que jorra de uma das vielas da favela, custa 2 ksh (menos de US$0,1). Uma ida a um banheiro público, 3 ksh. O custo tem impacto no orçamento dos moradores. A maioria, segundo os guias locais, ganha menos que US$1 por dia. Outros não ganham nada. Mas são obrigados a pagar a chamada taxa de organização da juventude local.

O sistema adotado em Kibera, lembra Itamar, parece com as comissões de luz, criadas na década de 50, para garantir o serviço aos moradores das favelas do Rio ¿ também uma iniciativa comunitária.

¿ São pobrezas diferentes. De fato, aqui parece que estamos no passado. Mas é tanta coisa em comum... O fato é que, assim como lá, ninguém gosta de lixo e de sujeira. E a gente aprende a viver, a tirar o melhor possível de onde não tem nada. Eu estou em casa ¿ disse Mônica Santos Francisco, do morro do Borel:

¿ Olha, eu fazia isso quando era criança ¿ completou Mônica, apontando para a fila de moradores enchendo baldes de água, na bica privatizada da comunidade.

Brasileiros se comovem com o problema da Aids

A entrada em Kibera não é gratuita para visitantes. Um guia cobra 2.000 Ksh (cerca de US$30) para contar as mazelas da comunidade.

Itamar Silva reconheceu que ficou constrangido ao se sentir estrangeiro em uma comunidade:

¿ A gente aqui não foge desse estigma de vir de fora. Por mais que eu seja um favelado, me sinto um estrangeiro ¿ afirmou Itamar.

A disseminação do vírus da Aids levou a comunidade a criar serviços especiais de atendimento clínico ¿ ainda que precário. E a criar cooperativas de trabalho para os soropositivos.

¿ O maior problema que temos aqui é de saúde ¿ atesta o administrador de Kibera, Obelta Opelle, eleito há quatro anos para o cargo, lembrando que 50% dos moradores foram infectados pelo HIV.

Um grupo de 26 mulheres soropositivas, que se conheceu durante o tratamento, em uma clínica em Kibera, vendia bijuterias, na tarde da última quinta-feira, em um barraco da comunidade.

¿ Estou tentando sobreviver e ajudar meus filhos ¿ afirmou Judith Akinyi, de 38 anos, soropositiva há dez, feliz por não ter infectado a filha mais nova, de oito anos, com o vírus.

¿ Meu Deus, eles vivem todas as tragédias da pobreza, e ainda tem a Aids ¿ lamentou Cleonice Dias, moradora da Cidade de Deus, que passou grande parte do percurso pela comunidade aos prantos.

As crianças andam pelas vielas e becos de Kibera sem qualquer assistência. A comunidade também improvisa escolas para as crianças, dentro dos barracos de alvenaria:

¿ Essas crianças são como minhas filhas. Eu quero fazer disso aqui um lugar melhor ¿ afirmou Penina Onymbo, de 27 anos, que já perdeu parentes para a Aids.

Líder comunitário pede ajuda ao governo do Brasil

O mais novo investimento do administrador é na construção de um banheiro comunitário, com capacidade para 600 usuários por dia. O projeto é estimado em 225 mil Ksh. Hoje, há cabines espalhadas em alguns locais da favela, que despejam o esgoto em um rio imundo que corta a comunidade. Aproveitando a presença de brasileiros, o administrador de Kibera fez um apelo:

¿ Eu sei que o governo brasileiro gosta muito do Quênia. Gostaria de uma parceria, para terminarmos e pagar esse empreendimento ¿ afirmou Obelta, que reconhece desconhecer as questões sobre pobreza ligadas ao Brasil:

¿ De lá, só conheço o Ronaldinho.

O grupo de moradores de comunidades viajou a Nairóbi com recursos do fundo de solidariedade do Ibase, capitalizado com recursos dos funcionários da ONG, descontados mensalmente dos salários. A intenção era ampliar a participação popular brasileira no Fórum Social Mundial.