Título: Arco-íris de cores pálidas no campo democrata.
Autor: Harazim, Dorrit
Fonte: O Globo, 28/01/2007, O Mundo, p. 40

Histórico de elite enfraquece candidaturas de negro, mulher e latino-americano junto aos nichos que deveriam representar.

Ainda falta um ano para o início oficial da corrida que apontará os dois candidatos majoritários à sucessão de George W. Bush. Mas já é possível afirmar que a eleição de 2008 será a de maior diversidade da história americana. Até agora, as fichas deste inédito arco-íris disputam espaço somente no tabuleiro democrata: pela primeira vez em 218 anos, querem assento na Casa Branca uma mulher (Hillary Clinton), um negro (Barack Obama, filho de pai queniano) e um hispânico (Bill Richardson, filho de mãe mexicana), além do habitual plantel de candidatos a candidato 100% americanos, brancos, do sexo masculino.

Ironicamente é a natureza diversa da própria diversidade dos três candidatos que ameaça embaralhar o jogo. Hillary, que segundo pesquisa ABCNews/Washington Post desta semana sai na frente com 41% da intenção dos votos democratas, é, ao mesmo tempo, a mulher mais odiada da América. Tanto pelo eleitorado republicano como por liberais feministas.

Pai negro, mas pertencente à elite

Obama, cujo talento natural para enfeitiçar platéias só perde para o insuperável Bill Clinton, carece do pedigree exigido para representar o eleitorado negro: sua mãe é branca, nascida no interior do Kansas, e seu pai não descende dos escravos despejados na América por navios negreiros. Cruzou o Atlântico porque quis, formou-se em Harvard porque pôde, e retornou ao Quênia para reintegrar a elite na qual nasceu. Por enquanto, Obama conta com 17% da intenção de votos dos democratas.

Quanto a Bill Richardson, governador do Novo México e lanterninha na pesquisa da ABCNews (1% dos votos democratas no dia do lançamento de sua candidatura), também a sua diversidade é só meia-bomba: pai branco, de Boston, executivo do mercado financeiro, despachado para o México como alto funcionário do Citibank. Ainda assim, convém reter o nome de William Blaine Richardson, de 59 anos, nascido na Califórnia e infância mexicana. Sua fluência em espanhol é absoluta, e seu visual é mais latino do que Wasp (white, anglo-saxon, protestant, ou branco, anglo-saxão e protestante).

Isso porque a população de origem latino-americana dos Estados Unidos (14,4%) já suplantou a dos negros, que, segundo o Censo de 2005, estacionou em 12,8%. Ademais, ao longo de 27 dos últimos 31 anos de história americana, a Casa Branca esteve ocupada por um governador ¿ sendo que 15 destes anos, por um governador de estado do oeste, como Richardson. Seu peso político real como cabo eleitoral dono de cobiçada cesta de votos, ou companheiro de chapa que agrega ainda não pode ser medido.

Por enquanto, tudo indica que o embate mais fratricida, antes do confronto final com o adversário republicano, será mesmo entre Hillary e Obama. No quesito capacidade de arrecadar fundos, Hillary tem se revelado imbatível. Conseguiu ultrapassar a cifra de US$50 milhões em caixa antes mesmo de anunciar a candidatura. E poucos excluem a possibilidade de sua campanha bater em estratosféricos US$100 milhões quando começarem as eleições primárias, em fevereiro próximo. ¿Eu posso tudo¿, já disse ela certa vez.

Em tese, Hillary sequer precisaria de cofrinho tão recheado uma vez que não existem eleitores indecisos em relação à sua pessoa: metade a odeia, metade lhe é fiel, ambos com intensidade máxima. Mesmo que sature as televisões com comerciais diários, lhe sobra pouco espaço para alterar sua imagem.

Já Obama, que deverá formalizar a anunciada candidatura nas próximas semanas, é só estampa, estilo e adulação da mídia por enquanto. Ele precisará de cada minuto televisivo para criar uma identidade política e construir uma biografia presidencial. Os pontos vulneráveis do jovem senador em primeiro mandato por Illinois são tão óbvios quanto seus talentos, a começar pela inexperiência abissal em assuntos de política externa. Embora tenha dois anos a mais do que os 43 que levaram John Kennedy à Presidência em 1960, como lembra a revista ¿Economist¿, JFK tinha bagagem recheada quando desfez as malas na Casa Branca: veterano de guerra, seis anos como deputado, oito como senador e, sobretudo, filho do poderoso patriarca bucaneiro Joseph P.

Em qualquer outra eleição, seria possível fazer uma leitura positiva do perfil ainda imaculado de Obama: por que não instalar na Casa Branca alguém ainda relativamente virgem ¿ se é que isso existe, mesmo em política ¿, sem laços subterrâneos com grupos de interesse, lobistas, caciquismo partidário? Por um bom motivo: em 2008 os EUA ainda estarão atolados numa ciranda de guerras e conflitos no Oriente Médio e Obama foi incapaz, até agora, de produzir proposta específica de alternativa ao curso seguido por Bush.

Sua oposição à guerra é pública e poderia lhe trazer dividendos se acompanhada de alguma proposta alternativa concreta para acabar com ela, já. Obama tem a decência de lembrar que, ao contrário de seus principais competidores, não precisou votar quando Bush pediu plenos poderes ao Congresso, após os ataques do 11 de Setembro, e recebeu carta branca. Isso foi em 2001, quando ele ainda não era senador.

Só que neste início de 2007 já está quase passando da hora. Sua resposta ao anúncio presidencial de aumento dos efetivos militares foi de desaprovação genérica. ¿O aumento de tropas é uma política falida que não conta com a concordância dos generais, nem dos democratas, nem dos republicanos, e sequer dos próprios iraquianos. É preciso levar a guerra a um final responsável¿, disse.

Nenhum prazo específico, nenhum teto máximo de efetivos e, sobretudo, nenhum veto ao pedido de verba adicional para o esforço de guerra. ¿A maneira mais eficaz de acabar com a guerra é fechar a torneira financeira¿, diz a deputada negra Maxine Waters. No caso de Obama, mesmo quando aborda a espinhosa questão de um calendário para a retirada, prevalece a retórica sobre a substância:

'A retirada por etapas poderia começar dentro de quatro a seis meses. O escalonamento não precisa, necessariamente, ser iniciado em 2007, mas é imperativo que comece.

É interessante notar que aquele que seria seu eleitorado cativo já deu ampla demonstração de não gostar da guerra. Segundo pesquisa do instituto Zogby, apenas 7% dos afro-americanos se declararam a favor de uma guerra que poderia, conforme formulação da pergunta, ¿resultar na morte de milhares de civis iraquianos¿. Para o negro americano, a sangria de U$8,4 bilhões despejados mensalmente na frente iraquiana poderia ser bem melhor investida no saneamento de problemas urbanos domésticos.

A posição de Hillary em relação ao Iraque não é muito diferente, mas segue uma lógica. Tendo votado a favor da invasão, seu recuo precisa ser mais lento. Certamente por isso, tratou de agendar uma ida ao cenário da guerra justamente na semana em que a Comissão Parlamentar das Forças Armadas, da qual é membro, sabatinava o novo homem-forte da operação, general David Petraeus, sobre a conveniência de se mandar outros 21.500 ao matadouro iraquiano. Ao anunciar sua candidatura não foi muito além do ¿uma das questões de fundo na eleição de 2008 será a forma como daremos um final à guerra¿.

Hillary tem vantagem em relação a adversários.

A posição de Hillary no tabuleiro político é singular. Ela está, simultaneamente, a um passo do triunfo absoluto e à beira do precipício como mulher no poder. ¿Deve ser pelas escolhas que fui fazendo ao longo da vida; ou porque mudo tantas vezes de penteado¿, admitiu certa vez, usando a blague no seu sentido mais profundo. ¿Eu odeio Hillary Clinton porque ela é Hillary Clinton, e sei que meus leitores entendem do que estou falando¿, resume um dos milhares de blogueiros que fazem disso uma profissão. Segundo levantamento recente, existem 17 mil sites que a dissecam sem trégua.

Ao mesmo tempo, até agora, a candidata parece trucidar quem aparece pela frente. Sua vantagem sobre Obama junto ao eleitorado negro democrata, por exemplo, é de 26 pontos. Mesmo diante do senador John McCain, o mais forte adversário republicano até agora, Hillary fica de pé: pelas projeções mais recentes, está dando empate, 47% a 47%, enquanto McCain derrotaria todos os demais democratas até agora cotados como possíveis candidatos.

Em contrapartida, se Hillary Clinton vencer em 2008 isso fará com que apenas duas famílias tenham ocupado a Casa Branca nos últimos 24 anos. E, como lembra o colunista Walter Shapiro, já tem mais um nessa fila: o ex-governador da Flórida e primeiro-irmão Jeb Bush. Em matéria de diversidade, os EUA poderiam fazer melhor.