Título: Combustíveis limpos, alimentos mais caros
Autor: Rodrigues, Luciana
Fonte: O Globo, 04/02/2007, Economia, p. 37

Preocupação com clima aumenta demanda por biodiesel e etanol, afetando preços agrícolas e prejudicando os pobres

Luciana Rodrigues

No México, a alta nos preços das tradicionais tortillas, que chegaram a triplicar, levou milhares de manifestantes às ruas semana passada. Na Índia, o governo limitou exportações de açúcar. Na China, teme-se um desabastecimento de milho. No rastro das preocupações globais com o clima ¿ e frente ao aumento na cotação do petróleo ¿ combustíveis feitos de produtos agrícolas, como etanol e biodiesel, ganham terreno. E levam às alturas os preços de alimentos, gerando apreensão sobre a segurança alimentar em países mais pobres ou populosos.

Nos últimos 12 meses, o preço internacional do milho (matéria-prima tanto da tortilla mexicana como do etanol usado nos carros americanos) subiu 55%. A soja, cuja produção foi reduzida nos EUA para abrir espaço para o cultivo do milho, teve alta de 13% no mercado externo. No Brasil, o açúcar refinado, feito da cana que aqui é insumo para o etanol, ficou 15,74% mais caro no varejo em 2006.

Instituto prevê mandioca 54% mais cara e trigo, 16%

Os efeitos são em cascata, já que milho e soja são usados em ração e alimentos industrializados. E serão estendidos a outros grãos. O International Food Policy Research Institute (IFPRI), centro de pesquisas sobre fome e pobreza sediado em Washington, estima que, na melhor das hipóteses, a mandioca ficará 54% mais cara e o trigo, 16%, em 2020, quando os chamados biocombustíveis devem responder por 20% da energia usada para transporte no mundo, contra os menos de 10% atuais.

¿ Os preços dos alimentos vão subir. E os pobres serão os mais prejudicados porque, mesmo que sejam agricultores, são consumidores líquidos de alimentos, ou seja, consomem mais do que produzem ¿ afirma Siwa Msangi, do IFPRI.

A busca por fontes alternativas de energia, diante das evidências cada vez mais incontestáveis da responsabilidade do homem pelo aquecimento global, fez países ricos e em desenvolvimento adotarem metas ousadas de substituição dos derivados de petróleo pelos combustíveis limpos. Por enquanto, a agroenergia aparece como a opção mais viável.

¿ O recente discurso de Bush (George W. Bush, presidente dos EUA) confirma isso. Em todo o mundo, a questão ambiental entrou definitivamente na agenda e se tornou motivação mais forte do que o petróleo. A demanda por biodiesel e etanol vai crescer mesmo que a cotação do petróleo recue, pois será legitimada por fatores ambientais ¿ diz Hélder Queiroz, do Grupo de Economia da Energia da UFRJ.

Os competitivos produtores agrícolas brasileiros têm muito a ganhar, seja com a exportação de álcool, seja com a alta dos grãos. As vendas externas de milho brasileiro triplicaram em 2006, alcançando US$481 milhões. Fábio Silveira, da RC Consultores, afirma que houve uma mudança de patamar nos preços. Ele estima que a cotação da soja vai se consolidar entre US$6,50 e US$7 por bushel (27,2 kg), contra média histórica de US$5,50. Quando China e Japão definirem metas para combustível limpo, diz Silveira, preços de açúcar e grãos vão subir mais.

¿ O cenário é muito favorável para todo o complexo agroenergético ¿ afirma.

O outro lado da moeda vai pesar no bolso dos consumidores. Os alimentos já estão mais caros: o milho subiu 34% no atacado em 12 meses. Em 2006, enquanto os preços médios dos alimentos aumentaram só 1,23%, o açúcar cristal teve alta de 16,49% e o óleo de soja, de 15,50% no varejo.

¿ A formação do preço do milho no Brasil, antes voltado só para o mercado doméstico, agora segue de perto as cotações internacionais ¿ explica Salomão Quadros, responsável pelos índices de inflação da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Para Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e hoje coordenador da GV-Agro, é uma falácia afirmar que a energia vai competir com os alimentos. Na sua avaliação, os ganhos de produtividade na agricultura permitirão oferta suficiente de matéria-prima para combustíveis e para alimentação. No Brasil, acrescenta, há hoje 220 milhões de hectares destinados a pastagens, dos quais 90 milhões são aptos à agricultura e 22 milhões, ao plantio de cana.

Com incentivos, agricultura familiar pode se beneficiar

O pesquisador Siwa Msangi, do IFPRI, concorda que, com preços mais altos, haverá incentivos a novas tecnologias e aumento da área plantada no mundo, equilibrando oferta e produção. Mas, na sua opinião, o ajuste só será feito a longo prazo e, até lá, os pobres sofrerão com preços de alimentos mais altos e mais voláteis. É preciso que os governos adotem políticas para permitir que, entre os pobres, pelo menos os agricultores se beneficiem do avanço dos biocombustíveis. As oleaginosas usadas para o biodiesel, diz Msangi, oferecem as melhores oportunidades, já que a cana-de-açúcar para o etanol exige produções em larga escala.

Queiroz, da UFRJ, lembra que o programa do biodiesel brasileiro acerta ao mirar na agricultura familiar. Mas alerta que será preciso a coordenação do governo por muito tempo para evitar que os pequenos percam espaço, por exemplo, para os grandes produtores de soja:

¿ O caminho a percorrer é longo. Não sabemos ainda qual oleaginosa vai ganhar o jogo do biodiesel. No início do Proálcool, usava-se mandioca e arroz, mas só a cana ficou.