Título: Portugal decide sobre aborto
Autor: Niemeyer, Adriana
Fonte: O Globo, 04/02/2007, O Mundo, p. 43

Defensores do direito de escolha têm vantagem a 7 dias de votação, mas direita e Igreja reagem.

Adriana Niemeyer

Os portugueses estão a uma semana de decidir se o aborto deve ser descriminalizado no país. Portugal é, ao lado de Irlanda e Malta, um dos três países da União Européia em que mulheres podem ser presas caso interrompam a gravidez. E as pesquisas indicam uma vantagem de 20 pontos percentuais para os eleitores que defendem que as mulheres tenham o direito de escolha. Mas entidades conservadoras e a poderosa Igreja Católica portuguesa são adversários que têm cada vez mais descontado a vantagem nas pesquisas, só perdendo em força para um terceiro fator: a enorme apatia do eleitorado.

O referendo, no qual o ¿sim¿ descriminalizaria os abortos realizados com até dez semanas de gravidez e o ¿não¿ manteria as atuais regras, foi uma promessa de campanha do premier José Sócrates, do Partido Socialista.

¿ As investigações judiciais, a violação da intimidade e a exposição pública do sentimento e do sofrimento das mulheres que provocam aborto são inaceitáveis nos dias de hoje ¿ afirma a deputada socialista Helena Pinto, que luta pela causa desde que o ¿sim¿ foi derrotado em 1998.

Atualmente por lei existem três situações em que o aborto é permitido antes das dez semanas de gestação: em caso de estupro, de má formação do feto ou se a saúde física ou psíquica da mãe estiver em perigo. Porém neste último caso as razões psicológicas quase sempre não são levadas em conta pelos médicos portugueses.

O aborto voluntário é considerado crime e podem ser aplicadas penas de até três anos de prisão para a mulher e de até oito anos para o médico. De acordo com os últimos dados divulgados pelo ¿Movimento Jovens pelo sim¿, 18 mulheres foram condenadas desde que um referendo semelhante foi derrotado em junho de 1998.

Nas últimas pesquisas, o ¿sim¿ tem 54% das preferências, contra 33% do ¿não¿. Mas em vez de dar confiança aos defensores do direito ao aborto, os números os deixaram preocupados. Em outubro, o ¿sim¿ tinha 63% de preferência. A tendência lembra a do último referendo sobre o assunto, no qual o ¿sim¿ tinha vantagem no início da campanha e acabou perdendo por uma margem ínfima: 50,91% dos votos válidos foram ¿não¿.

De qualquer forma, o temor maior não é a queda da vantagem, mas a apatia da campanha. No referendo de 1998, mesmo que o ¿sim¿ tivesse vencido o resultado não seria validado. Naquela oportunidade, a abstenção foi de avassaladores 68,06%. Para aquele referendo valer eram precisos os votos de pelo menos 50% dos eleitores inscritos, e a mesma regra vale para a votação do próximo domingo.

Talvez seja por isso que o primeiro-ministro Sócrates não esteja fazendo campanha para o ¿sim¿, que sempre defendeu. Todas as suas intervenções são para convocar os eleitores à urnas, para não perderem a chance de ¿expressar diretamente sua opinião¿. Além dos socialistas, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda e movimentos feministas defendem o ¿sim¿.

Até Fátima é usada como arma política

Mas os opositores do direito ao aborto parecem estar mais organizados. Já são 15 as entidades criadas para fazer campanha pelo ¿não¿, além de legendas de direita, como o Partido Social Democrata (PSD) do presidente Aníbal Cavaco Silva.

Isilda Pegado, ex-deputada do PSD e presidente da Federação Portuguesa pela Vida, não esconde ¿a enorme alegria¿ ao ver constituídos 15 movimentos pelo ¿não¿:

¿ A sociedade sentiu que era preciso mobilizar-se. Trata-se de uma verdadeira descentralização e esta é a única forma de chegar ao país real , através de movimentos de raiz local.

Segundo ela, a mobilização em massa ocorreu agora para contrabalançar o peso político do governo, declaradamente favorável ao ¿sim¿.

¿ A situação, em termos políticos, é diferente. Em 1998, no governo António Guterrez, eram mais neutros ¿ explicou.

Na reta final da campanha, porém, o jogo ficou mais pesado. Panfletos distribuídos pelo movimento Campanha pela Vida afirmam que votar no ¿sim¿ é desrespeitar a santa padroeira do país, Nossa Senhora de Fátima:

¿No ano em que se comemora o 90º aniversário das aparições de Fátima, Nossa Senhora chora por milhares de inocentes que podem perder a vida antes mesmo de dar o primeiro gemido¿, diz um trecho do panfleto.

A Igreja também entrou na disputa. A Conferência Episcopal Portuguesa declarou que ¿não participaria de nenhuma campanha eleitoral¿, apenas se limitaria a um ¿esclarecimento de consciências¿. Porém, no último mês, vários bispos fizeram declarações polêmicas. Um deles afirmou que o aborto é um crime capital e implica em excomunhão. Outro comparou o aborto ao terrorismo. Discursos que surpreenderam inclusive as alas menos radicais da Igreja Católica.

¿ Parece-me exorbitante ameaçar os católicos que votam sim com excomunhão. E comparar o aborto ao terrorismo é fazer das mulheres aliadas da al-Qaeda. A retórica deve ter limites ¿ declarou Frei Bento Domingues ao jornal ¿Público¿.

Todos os anos, cerca de 40 mil portuguesas cruzam a fronteira com a Espanha para abortar. O curioso é que, no papel, as leis espanholas são muito semelhantes às de Portugal. A diferença é a interpretação da legislação pelas autoridades da Espanha.