Título: No Brasil, mais de 1 milhão de abortos ilegais
Autor: Weber, Demétrio
Fonte: O Globo, 04/02/2007, O Mundo, p. 44

Mulheres pobres são as mais afetadas por cirurgias clandestinas e mal feitas, que custam milhões ao SUS

Demétrio Weber

BRASÍLIA. O Ministério da Saúde estima que 1 milhão de abortos ilegais sejam feitos anualmente no Brasil, apesar da proibição no Código Penal e da forte oposição da Igreja. Em 2005, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 241 mil internações para curetagens pós-aborto, ao custo de R$35 milhões. As tentativas de aborto ilegal com agulhas de tricô, pregos ou remédios mataram pelo menos 160 mulheres em 2004, segundo a coordenadora da área técnica da Saúde da Mulher, Maria José de Oliveira Araújo. Segundo ela, o problema atinge majoritariamente gestantes pobres que não têm condições de pagar clínicas clandestinas.

¿ A ilegalidade penaliza as mulheres pobres, que acabam fazendo abortos em situações absolutamente inadequadas e com conseqüências desastrosas ¿ diz Maria José.

O ginecologista Thomaz Rafael Gollop, que representou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na comissão criada pelo governo federal para discutir a descriminalização do aborto, concorda:

¿ Todo mundo sabe que as camadas A e B recorrem à interrupção de gestação em condições médicas mais favoráveis, ainda que ilegais. O aborto é feito de qualquer jeito, com lei ou sem. É ilusão achar que a lei impede a sua prática.

Proposta na Câmara pode tornar lei mais severa

Coordenada pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres, a comissão tripartite reuniu 18 representantes do governo, do Congresso e da sociedade. O trabalho resultou num projeto de lei para descriminalizar a prática do aborto. A proposta acabou engavetada, após causar rebuliço na Comissão de Seguridade Social e Família, onde foi discutida em 2005. Sob pressão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de outras entidades contrárias ao projeto, os deputados desistiram da votação de um substitutivo, ao qual foram anexadas outras 13 propostas favoráveis e contrárias.

O Código Penal brasileiro, de 1940, permite a interrupção da gravidez em apenas duas situações: estupro ou risco de vida à gestante. Em 2005, o SUS registrou 1.772 internações ligadas a abortos autorizados pela lei. De janeiro a outubro de 2006, foram mais 1.670 internações, com despesas de R$244 mil. Um dos projetos apresentados à Câmara é de autoria de um ex-presidente da Casa, o ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), que pretende proibir a interrupção de gravidez mesmo nos casos atualmente permitidos.

O promotor de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde do Distrito Federal, Diaulas Ribeiro, diz que a restrição praticamente não cria mais efeitos práticos, do ponto de vista da punição das gestantes. Isso porque, segundo ele, o próprio Conselho Federal de Medicina orientou os médicos, em nome do sigilo da profissão, a não mais denunciarem as mulheres que interrompem a gravidez. O problema, diz o promotor, é que a proibição legal impede a assistência médica no SUS ou em clínicas particulares que não queiram infringir a lei, assim como agrava o trauma emocional das mulheres que praticam o aborto.

¿ Embora não tenha efeito prático, a proibição tem conseqüências perversas na vida íntima das mulheres, jogando-as na clandestinidade. Quem tem dinheiro acaba pagando valores extorsivos. A outra opção é o aborto inseguro, que pode levar ao cemitério ou à infertilidade ¿ afirma Diaulas, que é doutor em direito penal.

Em 2004, o Ministério da Saúde editou nota técnica dispensando os hospitais de exigir ocorrência policial das mulheres vítimas de estupro que desejam abortar. O ministério diz que a nota buscou esclarecer médicos e profissionais da área sobre o que preconiza o Código Penal. A nota técnica, no entanto, causou polêmica e levou críticos da medida a acusarem o governo de estar incentivando a prática do aborto. Dos cerca de 70 hospitais habilitados a realizar abortos legais, metade não exige mais a apresentação de ocorrência policial, afirma a coordenadora.

A curetagem é um procedimento adotado também em decorrência de interrupções espontâneas de gravidez ou outras enfermidades. Ou seja, o número de internações não corresponde necessariamente a tentativas do chamado aborto inseguro, isto é, ilegal. Mesmo assim, dá uma idéia da dimensão do problema, diz Maria José. De janeiro a outubro de 2006, foram mais 182 mil internações, com gastos de R$26 milhões.