Título: Briga de foice
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 06/02/2007, O País, p. 4

LISBOA. Certamente não foi por acaso que o manifesto de um grupo de petistas, coordenado pelo ministro Tarso Genro, retomando a linha da ¿refundação¿ do PT e exigindo mudanças na direção partidária, começou a ¿vazar¿ imediatamente após a vitória do deputado Arlindo Chinaglia à presidência da Câmara. Representante do Campo Majoritário, cujo grande articulador politico sempre foi e continua sendo o ex-deputado José Dirceu, o vitorioso Chinaglia representa a prevalência daquele mesmo grupo paulista que esteve envolvido mais diretamente no escândalo do mensalão e na compra do dossiê contra os tucanos na eleição para governador de São Paulo.

Representa sobretudo a supremacia da maneira de fazer política que domina o PT desde que Lula, Dirceu e o Campo Majoritário comandam o partido. A crise do mensalão e o próprio processo evolutivo do governo, que foi se tornando mais e mais lulista e cada vez menos petista, se não por divergências de métodos, pelo menos por sobrevivência política, colocou os dois grupos em confronto, e o mesmo Tarso Genro que em nome de Lula fez uma intervenção no partido e tentou tirar de Dirceu o seu controle político, volta à carga.

Também não foi por acaso que, logo depois da vitória de Chinaglia, o tema de anistia de Dirceu tenha ganhado a prioridade política do PT, mesmo que ainda não a chancela oficial do partido. É o tipo de movimento que deve provocar arrepios no presidente Lula, que precisa de tudo neste segundo mandato, menos que as recordações do mensalão sejam trazidas de volta ao cenário politico.

Todas essas movimentações estão em consonância com os acordos políticos que levaram o PT a eleger o presidente da Câmara à revelia do presidente Lula, e que têm a ver com a sucessão presidencial de 2010. Se o Campo Majoritário conseguir se manter no poder depois da reunião da executiva em julho, marchará para impor um nome seu como candidato à sucessão.

O grupo de partidos de esquerda que sempre apoiou Lula nas campanhas presidenciais já articula a candidatura do deputado Ciro Gomes, do PSB, e a briga de foice no quarto escuro da coalizão governista será para valer. Por isso, um dos pontos do documento do ministro Tarso Genro é a defesa da influência de Lula nas decisões do partido. E por isso também faz bem a Lula que a idéia de um terceiro mandato seja mantida no debate, para dar-lhe uma perspectiva de futuro político imediato que contenha a rebelião em suas hostes e permita que governe sem se transformar em um ¿pato manco¿ prematuramente.

O reforço do Programa Bolsa Família, que ¿ conforme o estudo do cientista politico Jairo Nicolau, do Iuperj, analisado aqui no fim de semana ¿ se transformou numa máquina de fazer votos para o governo, pode fazer com que a popularidade de Lula estimule a idéia de um terceiro mandato, muito difícil de se concretizar, ou o torne um cabo eleitoral importante

Mesmo com a ressalva da secretária nacional de Renda de Cidadania, Rosani Cunha, responsável pela execução do Bolsa Família, que garante que o total de famílias beneficiadas por município é definido de acordo com a estimativa de pobreza da Pnad 2004, divulgada pelo IBGE, e não com objetivos eleitoreiros, o fato é que o programa mostrou-se de fundamental importância para o projeto político do governo.

No Fórum Nacional On Line do Instituto Nacional de Altos Estudos (Inae), uma outra inovação de seu presidente, o ex-ministro Reis Velloso, foi convidar cientistas políticos para comentar os trabalhos colocados no site. Um deles, Bolivar Lamounier, diz que ¿a conclusão inescapável é que a campanha de Lula não começou em 2006. Foi amplamente precedida por um direcionamento de verbas do Bolsa Família e de outros programas para municípios do tipo acima descrito ¿ antes pejorativamente designados como `grotões¿. Estes podem ou não ser os mais `rentáveis¿ do ponto de vista de uma estratégia de política social, mas sem dúvida o foram do ponto de vista eleitoral¿.

Mas ele chama a atenção também para o fato de que ¿a estratégia de `ativar preconceitos¿ tenha prestado decisiva contribuição a Lula . Acusar genericamente os `políticos¿ , colocando-se numa categoria à parte, como o Ser Providencial do imaginário populista, para tanto não vacilando sequer em atirar às feras os antigos companheiros petistas, foi provavelmente uma estratégia eficiente na capitalização eleitoral de preconceitos amplamente difundidos na sociedade¿.

Já a cientista política Maria Celina D¿Araujo destacou, entre outras coisa, ¿o fator medo como uma das possíveis explicações para o eleitor votar em Lula: medo de perder sua parte no Bolsa Família¿. A sensação de melhora sentida pela população não pode ser menosprezada, analisa Maria Celina D¿Araujo, e é um dado da realidade. Mas ¿se ficarmos nas estatísticas, em vários aspectos sociais, o país andou para trás durante o primeiro governo Lula. Pesquisas do Ipea, do IBGE, da ONU, da Transparência Internacional, entre outras, mostram que temos mais jovens fora da escola, mais trabalho infantil, mais desemprego entre os jovens, menos leitos hospitalares, o IDH empacou, a corrupção navega solta, a miséria e a indigência nas grandes cidades aumentaram. E isto para não falarmos das taxas de crescimento¿.

Maria Celina D¿Araujo acha que ¿precisaríamos levar em conta aspectos ideológicos, mais difíceis de medir¿ na vitória de Lula, como ¿a identificação com uma classe social e com uma putativa ideologia política¿. Maria Celina D¿Araujo constata que ¿ainda há espaço no Brasil para confundir políticas igualitárias com propostas de partidos classistas. Esquerda e igualdade são, certamente, diferentes disso. Além do mais, nem o PT é tão classista, nem Lula é tão petista. Lula é certamente um grande comunicador que aprendeu a ser pragmático, nas eleições e no governo. O Bolsa Família que o diga¿.